A ORDEM DOS ARQUITECTOS AFRICANOS
E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO NO ILUMINISMO EUROPEU
Jorge de Matos
E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO NO ILUMINISMO EUROPEU
Introdução
O séc. XVIII europeu foi o grande palco cronológico da transição histórico-civilizacional da Europa Moderna para a Idade Contemporânea. Enquanto charneira geradora da actualidade, implementou o Liberalismo político, definiu a economia de mercado, subverteu a sociedade feudal, extinguiu o monopólio religioso e restruturou a cultura científica.
Assim, justamente no âmbito temático da História cultural e mental, a Europa setecentista assiste à emergência sociológica do Iluminismo, enquanto fenómeno de acessibilização generalizante da Ciência racionalista e do seu inerente enciclopedismo empírico-tecnológico.
Paralelamente, o panorama hermético europeu torna-se exteriormente acessível com a especulativização maçónica e a diversificação litúrgica e conceptual das sociedades iniciáticas.
Neste sentido contextual, a presente comunicação pretende enunciar o contributo específico de um Rito maçónico setecentista pouco investigado e documentado – a Ordem dos Arquitectos Africanos – para a divulgação preservante da Ciência Hermética, nomeadamente da operatividade alquímica laboratorial, na conjuntura da cultura iluminista.
Aproveitamos ainda a oportunidade de agradecer reconhecidamente ao Dr. José Manuel Anes o convite para participar neste II Colóquio Internacional “Discursos e Práticas Alquímicas” e à Drª Maria Estela Guedes, do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, a solicitação para apresentar esta mesma intervenção temática específica.
1. O Iluminismo setecentista: Ciência e Hermetismo
Enquanto marco pontifical entre a modernidade e a contemporaneidade da civilização humana ocidental, o séc. XVIII é o “das Luzes”, na sábia acepção expressiva da Aufklärung germânica. Radicando de facto no final do século anterior na Alemanha e Inglaterra, o Iluminismo setecentista postula uma integral substituição transmutante e vitoriosa de todas as superstruturas conceptuais até aí vigentes por outras novas e totalmente opostas.
Alicerçado essencialmente na pioneiríssima omnipotência racionalista humana, o Iluminismo concebe a Razão como Deusa de Luz face à Fé, que ilumina toda e qualquer tenebrosa credulidade vinculada à Tradição escolástica medieval, substituindo a ignorância e a miséria pela ilustração e pelo progresso, bem como a caridade devota cristã pela filantropia humanitária deísta ou agnóstica.
Aos dogmas normativos e autoritários do Direito divino e das classes desiguais contrapõem-se as leis equilibradas e abrangentes do Direito natural e das sociedades igualitárias (por evolução ou revolução), além de promover o empirismo racional e antropocêntrico face ao tradicionalismo teológico e teocêntrico, gerando o Liberalismo enciclopedista face ao Absolutismo imobilista (passando pelo incontornável “Despotismo esclarecido”).
Sendo o Homem intimado sem recurso a “Sapere audere” ou “ousar Saber”, isto é, desbravar as até aí intransponíveis fronteiras metodológicas e epistemológicas do Conhecimento científico, ele vê-se vinculado à obrigatória necessidade de abandonar o seu comodismo existencialista em função de um pioneirismo incógnito que transcende toda a sua cosmovisão instituída – como na acepção subversiva da “Weltschaung” alemã – e que apaixona o investigador pelo seu entusiasmo incentivante, virtualmente ilimitado da pesquisa.
Esta estrutural alteração substituinte de eixo de percepção gera necessariamente a inevitável auto-responsabilização científica da Humanidade ocidental então cristalizada na letargia cognitiva vigente. Assim, face aos mesmos cenários, as ferramentas do património oneroso do Passado analítico-dedutivo e da lógica abstracta da Matemática ou da Metafísica são preteridas pelo livre arbítrio aliviante do Presente sintético-dedutivo e da lógica factual da Biologia ou da Física 1.
De igual modo, o Iluminismo sócio-político e científico-cultural afecta igualmente a Filosofia Hermética e as sociedades iniciáticas, tal como a religiosidade instituída e a devoção popular. O séc XVIII é o dos filósofos e cientistas, também como dos teósofos, destacando-se, desde o anterior, a mística do sapateiro alemão Jakob Böhme e do clarividente sueco Emmanuel Swedenborg, projectada na teurgia do cristão-novo francês Martinez de Pasqually e do seu discípulo Louis Claude de Saint-Martin 2.
Abordando o Esoterismo a face interna da Cosmovisão da Filisofia, a hierarquização dos planos invisíveis da Realidade manifesta nos cenários factuais da Natureza, o Iluminismo teosófico e iniciático, reivindicante do contacto com as entidades intermediárias, procurava pontificar entre a Tradição e a Actualidade, elucidando o carácter espiritual da nóvel investigação científica dos fenómenos universais.
As sociedades iniciáticas que se exteriorizaram progressivamente no séc. XVIII – como a Maçonaria e a Rosa+Cruz – reflectem em Inglaterra, França ou Alemanha toda esta situação, aproximando e distinguindo a Alquimia da Química na divulgação explicitante daquela, acessibilizando assim os seus discursos práticos face à sociedade profana da sua época, enquanto proposta de Via iniciática complementar ao Racionalismo empírico emergente.
Subsequentemente à ruptura artificial entre a Magia e a Física com o astrónomo italiano Galileu Galilei em 1602, ao divórcio entre o Ocultismo e o Racionalismo em 1623 com o Padre Mersene (que anuncia o advento histórico do filósofo francês René Descartes e insulta o alquimista inglês Robert Fludd na sua obra Questiones in Genesim), a distinção entre previsão estatística e predição vaticinante em 1656 com o cálculo de probabilidades do matemático holandês Christian Huygens, e a separação entre a Astrologia e a Astronomia com a admissão exclusiva desta na Academia das Ciências de França recém-criada pelo Primeiro Ministro Jean Baptiste Colbert, o cientista francês F. Geoffroy afirma em 1722 a impossibilidade científica (hoje ultrapassada) de transmutação, separando a Química e a Alquimia.
Refere ele na sua obra Artifícios concernentes à Pedra Filosofal que “A Arte jamais fez uma geração de algum dos metais imperfeitos que, segundo os alquimistas, são do ouro que a Natureza falhou, nem mesmo sequer fez um seixo. Conforme indica, a Natureza reserva para si todas as produções”. Ignorava assim ele a ambivalência científica e hermética (quando não alquímica) dos paladinos iluministas Isaac Newton e Emmanuel Swedenborg, entre outros.
Sendo o séc. XVIII a grande época de diversificação externa paulatina das correntes iniciáticas da Europa contemporânea, é também o palco específico da especulativização teórica e conceptual da Maçonaria operativa e corporativa de raiz medieval.
Neste âmbito particular, verifica-se uma estruturação progressiva dos seus símbolos e mitos temático-civilizacionais por sistemas litúrgicos diversos, hierarquizados em etapas faseadas de sucessivo aprofundamento espiritual: referimo-nos aos Ritos maçónicos de altos graus ou superiores aos três simbólicos universais de Aprendiz, Companheiro e Mestre.
É neste contexto de multiplicação ritualística que devemos distinguir o sector do Escocismo (referente à mítica génese escocesa medieval da Maçonaria operativa, relacionada com a eventual sobrevivência críptica da Ordem do Templo, já canonicamente extinta em França) e o da Tradição Egípcia (reminiscente na primitiva Tradição documental da Maçonaria operativa, apesar de apenas estruturado durante o séc. XVIII, particularmente com o magistério enigmático do Conde de Cagliostro, Grande Copta do Rito da Alta Maçonaria Egípcia, e a emergência dos Ritos de Mênfis e Misraim).
Assim, face ao surgimento dos mais diversos Ritos de génese “escocesa”, vão igualmente florescendo os Ritos Egípcios, de essência mais hermética que o cariz mais social e simbólico daqueles (sendo por isso geralmente ainda hoje por eles ostracizados e desvalorizados).
Um destes casos exemplificativos e emblemáticos, anteriores ao magistério de Cagliostro, é justamente o Rito dos “Arquitectos Africanos” (isto é, “Egípcios”, na acepção iluminista), fundado em Berlim c. 1767 por Karl Friedrich von Köppen (1734-1797), oficial do exército prussiano que, tal como outros sistemas homólogos minoritários e selectivos, arriscou o eventual e consequente desaparecimento histórico posterior com a sua sigilosa confidencialidade documental3.
Juntamente com J. W. B. von Hymnen, von Köppen publica em 1770 o tratado litúrgico germânico Crata Repoa, que pretende reproduzir as antigas iniciações maçónico-sacerdotais dos Mistérios Egípcios, realizadas no interior da Pirâmide de Quéops, na necrópole real de Gizé. Esta obra obtém uma rápida e expansiva popularidade literária na intelectualidade maçónica europeia e posteriormente também norte-americana, sendo largamente traduzida em francês e inglês desde 1821 (por Jean-Marie Ragon e Antoine Bailleul), discriminando com grande pormenor cenográfico os rituais dos diversos graus e os respectivos segredos e fórmulas de reconhecimento entre os membros.
O Rei Frederico II o Grande da Prússia, protector nacional da Maçonaria e figura mítica de fundação litúrgica, terá apoiado a criação deste Rito, o qual se ocupava eminentemente de investigação académico-pedagógica esotérica, histórica e científica. Neste sentido, o monarca patrocinara mesmo a edificação na Silésia de uma magnífica sede arquitectónica do Grande Capítulo, contendo uma riquíssima biblioteca, um Museu de História Natural e um laboratório químico e alquímico, além de premiar ainda anualmente com uma medalha de ouro conferida numa assembleia magna o melhor ensaio científico-literário concorrente sobre a génese da Ordem.
Professando uma doutrina eminentemente cristã, hermética e alquímica, este Regime ou sistema filosófico-ritualístico compunha-se de cinco altos graus: Discípulo, Arquitecto ou Aprendiz dos Segredos Egípcios; Iniciado dos Mistérios Egeicos; Irmão Cosmopolita, Amigo da Verdade ou Mestre dos Segredos Egípcios; Filósofo Cristão; Tribuno ou Cavaleiro do Perfeito ou Eterno Silêncio (além das três eventuais dignidades honoríficas de Escudeiro, Soldado e Cavaleiro da Ordem, apenas conferidas por excepcional prestação de serviços) – envoltos em alguma nebulosa confusão quanto às respectivas fontes documentais.
Reunindo-se as suas assembleias litúrgicas em capítulos e decorrendo os rituais em latim, a Ordem era governada por um Grande Capítulo constituído de 12 dignitários supremos e um Grão-Mestre geral. Tratando-se, contudo, de um Rito marcadamente elitista e impopular, quanto à elevada exigência da sua filiação académica, justifica-se a sua escassa duração apenas até ao início do séc. XIX e parca expansão na Alemanha (onde expirou entre 1786 e 1806) e França 4 – por falecimento dos seus patronos ou eventual ingresso dos seus mentores noutros Ritos ou Obediências, ou ainda realizando os seus objectivos herméticos fora de qualquer enquadramento maçónico.
Assim, o Rito fora efectivamente introduzido em França pelo empresário itinerante estrasburguês Johann Friedrich Kuhn, maçom da Estrita Observância Templária do Barão Karl von Hund, Réau+Croix do Templo teúrgico-martinezista de Bordéus da Ordem dos Cavaleiros Maçons Eleitos Sacerdotes do Universo e membro da Loja parisiense “Os Amigos Reunidos” do Rito egípcio dos Filaletos, encontrando-se ainda em contacto com a maioria dos maçons ocultistas franceses e alemães da sua época.
Graças a Kuhn, o seu funcionamento francês verificava-se através de uma Loja parisiense inicial e da sua sucessora “Estrela Flamejante dos Três Lizes” de Bordéus, fundada em 1773 e posteriormente absorvida pelo Grande Oriente de França em 1875 5, participando ainda alguns dos seus membros na fundação consequente de outros posteriores Ritos maçónicos herméticos, como o dos Filaletos, igualmente egípcio 6.
Conclusão
Sinteticamente e conforme verificámos ao longo desta comunicação, o Iluminismo é um movimento cultural e filosófico de profundos contrastes dinâmicos. Na sua transição entre a Modernidade e a Contemporaneidade, não só opera o conflito secularizante entre uma estagnação confessional e um progressismo laico, mas também a ponte epistemológica entre a Ciência racional e a Tradição iniciática.
Apesar da já mencionada escassez de suportes informativos, é possível evidenciar a clara inserção do caso da Ordem dos Arquitectos Africanos aqui em estudo no contexto pioneiro transdisciplinar da Cultura iluminista científico-hermética. A sua idiossincrasia estrutural, litúrgica e doutrinal reflecte a pluralidade esotérica ocidental da época.
Por outro lado, este Rito constitui uma emanação do Hermetismo egípcio, emergente e patente na sua identidade ritualística e simbólica, de onde se destaca de imediato a operatividade alquímica num enquadramento académico-científico não meramente racionalista. Tal facto constata-se pela sua inerente confidencialidade documental e por um explícito elitismo demográfico de cooptação selectiva.
Notas:
1 Ver Manuel Antunes, “Iluminismo”, in Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Editorial Verbo, Lisboa, 1992, vol. 10, cols. 920-929.
2 Ver Pierre Riffard, O Esoterismo, Mandarim, São Paulo, 1996, pp. 621, 647.
3 Ver René Le Forestier, La Franc-Maçonnerie templière et occultiste aux XVIIIe et XIXe siècles, Aubier Montaigne / Nauwalaerts, Paris / Bruxelles, 1970, p. 528;
Jean-Marie Ragon, Orthodoxie maçonnique, suivie de la Maçonnerie occulte, Dentu, Paris, 1853, pp. 239-242;
François-Timoléon Bègue [Clavel], Histoire Pittoresque de la Franc-Maçonnerie, Pagnerre, Paris, 1843, p. 190;
Karl R. H. Frick, Licht und Finsternis (Gnostich-theosophische und freimaurerisch-okkulte Geheimgesellschaften bis an die Wende zum 20. Jahrhundert), Akad. Druck-und-Verlagsanstalt, Graz, 1978, vol. II, pp. 135-221;
August Wolfstieg, Bibliographie der Freimaurerischen Literatur, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, Hildesheim, 1912, vol. II, pp. 970-971;
Gerard Galtier, Maçonnerie Égyptienne, Rose+Croix et Néo-Chevalerie – Les Fils de Cagliostro, La Pierre Philosophale / Éditions du Rocher – Jean-Paul Bertrand Éditeur, s. l., 1989, pp. 36-39;
Henry Wilson Coil, Coil’s Masonic Encyclopedia, Macoy Publishing & Masonic Supply Company Incorporated, New York, 1961, p. 531.
4 Ver René Le Forestier, op. cit., pp. 206, 528, 913, 914, 922;
Johel Coutoura, La Franc-Maçonnerie à Bordeaux (XVIIIe – XIXe siècles), Jeanne Laffitte, Marseille, 1978, pp. 71-72;
Anónimo, “Documents inédits réunis par Jean Guiraud et mis au jour par Robert Amadou”, in Renaissance Traditionnelle, Paris, nº 62-63, avril-juillet 1985, p. 105;
Michel Moreneau, Les secrets hermetiques de la Franc-Maçonnerie, Axis Mundi, Paris, 1989, pp. 27-32.
5 Ver Essai de repertoire des loges maçonniques françaises, Publications de la Commission d’Histoire du Grand Orient de France, Paris, 1966.
6 Ver Gerard Galtier, op. cit., pp. 30-35.
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