segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Amonius Saccas



A Academia Platónica do século IV aC preservou a luminosa marca de seu fundador, e foi modelada sobre os ensinamentos e metodologia de Pitágoras. Estudantes mais jovens empreendiam os rigorosos estudos de matemática, astronomia e filosofia, estabelecidos por Platão, enquanto que discípulos maduros do mestre se engajavam em discussões exploratórias das proporções dinâmicas entre as ideias arquetípicas e a geometria viva do cosmos. Spêusipo, Xenócrates e Pólemon mantiveram a tradição Pitagórica dentro da escola, elaborando os ensinamentos de Platão e aplicando-os a cada departamento da Natureza. Durante o século III a Antiga Academia declinou, quando sob Crates e Arcesilau, e a Academia Média voltou sua atenção para disputas filosóficas com os Estóicos. Embora discípulo de Platão, Aristóteles, houvesse há muito estabelecido o rival Liceu, em oposição aos elementos Pitagóricos essenciais nas doutrinas Platônicas, foi a Média, ou Nova, Academia que os abandonou por uma forma de cepticismo filosófico grego. A argumentação deixou de ser um subsídio para viver a vida filosófica e se tornou um fim em si mesmo, e os ensinamentos de Platão foram virtualmente abandonados por aqueles que viam a si mesmos como seus herdeiros. Por volta do século I AC, Atenas ainda permanecia como um centro intelectual, mas seu papel social e político havia sido eclipsado por outras cidades, e seus filósofos eram inábeis tanto para gerar originalidade no pensamento quanto para chegar além dos limites da Grécia. A tocha da criatividade passou para Alexandria, onde surgiu uma outra Academia para ofuscar e sobreviver à sua progenitora.

Alexandria era o ponto focal do mundo Mediterrâneo, atraindo para suas fervilhantes ruas romanos, gregos, judeus, egípcios, núbios, persas, indianos e uma hoste de outros. Uma intensa inter-fertilização religiosa e intelectual produziu incontáveis facções litigantes e cultos abortivos, mas forneceu também a arena em que emergiram uma profunda visão espiritual e filosófica. Mesmo conquanto parcialmente destruída por tropas de Júlio César no tempo de Cleópatra, a mundialmente afamada Biblioteca continuava a encorajar a investigação erudita nos sistemas filosóficos. As idéias religiosas orientais estimularam uma volta ao pensamento original de Pitágoras e Platão. De acordo com Cícero, Públio Nigídio Fígulo clamou por uma renovação do ensino Pitagórico já no início do século I dC. Na época de César Augusto, Juba II, Rei da Líbia, mostrou tamanho interesse em Pitágoras que tratados espúrios foram produzidos para seu consumo, enquanto que Apolônio de Tiana esposou tanto o ensinamento e prática Pitagóricos em sua vida que foi amplamente reconhecido por seu entendimento intuitivo de seu mestre.

O interesse em Pitágoras naturalmente conduziu a um renovado interesse nos ensinamentos de Platão. Eudoro de Alexandria escreveu comentários sobre o Timeu em torno de 25 dC, e Trasilo, um mago na tradição Caldéia e astrólogo do imperador Tibério, arranjou os diálogos Platónicos em uma ordem imaginada para auxiliar a apresentação do pensamento Platónico para o leitor. Theon de Esmirna elaborou as doutrinas matemáticas de Platão em um tratado que até hoje sobrevive. Cláudio Galeno - o celebrado Galeno da medicina - seguiu a filosofia Platónica ao menor detalhe, e Celso, que disputou a verdade e as fontes da ortodoxia Cristã com Orígenes, era um declarado Platónico. Numênio de Apaméia reuniu os ensinamentos de Pitágoras e Platão e sustentava que sua sabedoria havia originalmente vindo do Oriente. A receptividade Alexandrina às ideias preservadas no Oriente, o interesse filosófico nos puros ensinamentos da tradição Pitagórico-Platónica e o reconhecimento de que as verdades devem ser vivenciadas para ser plenamente entendidas, estabeleceu o campo onde os ensinamentos da Religião-Sabedoria poderiam germinar e crescer novamente. O que era preciso era um instrutor que pudesse emoldurar ideias universais em uma linguagem comum compreensível e que pudesse treinar discípulos de visão e devoção suficientes para evocar aquelas ideias de cada tradição.

Amonius Saccas nasceu em torno de 175 dC de pais Cristãos que tentaram educá-lo na fé. Desde a tenra meninice, contudo, ele foi repelido pelo extremo dogmatismo que caracterizava o vociferante movimento Cristão de Alexandria. Desgostoso com as tendências mediúnicas e supersticiosas permitidas por numerosos devotos Cristãos, ele mergulhou na análise filosófica da antiga religião helenística. Ao contrário de muitos intelectuais da época, Amonius voluntariamente trabalhava para sustentar-se, e enquanto a tradição vulgar sustenta que o sobrenome "Sacas" seja derivado de sua ocupação como estivador, seu nome poderia igualmente ser tomado no sentido de "escudo de Amon". Sua busca de um entendimento da natureza das coisas foi nutrido pela convicção de que o indivíduo deveria praticar as verdades que aprendesse em todos os contextos caso objectivasse compreendê-las completamente. A devoção aos seus estudos levou-o a uma profunda apreciação do ensinamento de Platão, e ele encontrou ali um espírito de questionamento que ajustou-se ao seu interesse em descobrir uma filosofia universal. Sua meditação persistente sobre estes ensinamentos abriu caminho para que recebesse insights iluminados através de sonhos e visões. Com propriedade, Hiérocles chamou-o de Theodidaktos, "ensinado por Deus", pois ele fundia uma mente vigorosa com uma intuição desperta. Esta combinação emprestou tamanha claridade e força à sua compreensão de Platão e apreciação de Pitágoras que ele foi reconhecido amplamente como o fundador do Neoplatonismo. Este movimento enfim insuflaria uma vida nova nas Academias Alexandrina e Ateniense e encorajaria os estudantes a viver a vida filosófica ao invés de apenas discutí-la.

Depois de um longo período de retiro para estudo e meditação, Amonius estabeleceu uma escola de filosofia em Alexandria em 193 dC. Ele ensinava oralmente, e invariavelmente recusava confiar seu pensamento à forma escrita. Porfírio escreveu que "Erênio, Orígenes e Plotino fizeram uma promessa mútua de não divulgar a doutrina de Amonius: mas tendo Erênio quebrado o acordo, Orígenes e Plotino já não se sentiram obrigados por ele". De qualquer modo, Amonius mantinha um círculo interno, ao qual os três pertenciam. Enquanto que a revelação de Erênio foi perdida para a história, Orígenes e Plotino transmitiram muito do que Amonius lhes ensinou, mas velado pela linguagem de seus próprios pensamentos. Ambos honravam os Mistérios. Clemente de Alexandria, que louvou extensamente a Amonius, estava bem a par de que havia uma escola esotérica no Cristianismo primitivo, pois era um de seus membros, e é provável que Orígenes soubesse o mesmo. Plotino, de acordo com o testemunho de Porfírio, conheceu o significado dos Mistérios directamente através de suas próprias iluminações estáticas. Os detalhes dos ensinamentos de Amonius podem ser desconhecidos, mas o facto de que tenha tido discípulos tão leais de diferentes escolas de pensamento demonstra que sua doutrina era tão universal que podia acomodar uma larga variedade de formulações.

Seu ensinamento iniciava-se com a proposição de que a Deidade é um princípio absoluto, completamente transcendente, indescritível e incompreensível. Nemésio de Emesa escreveu que desta pressuposição inicial Amonius concluíra que a alma humana é uma radiação imortal da alma universal, ou Éter, idêntica a ela em essência, e portanto imperecível. Se a alma é imortal e de origem divina, então é possível a teurgia - a obra divina, a arte da total autotransformação e transvalorização de toda experiência. Amonius insistia que havia uma base universal para a ética no coração de todo sistema metafísico, e que o valor do pensamento mais altamente abstracto reside em sua habilidade de transformar a natureza humana através da luz sagrada que ele revela. Ele sustentava que cada homem deveria derivar sua ética do cerne da tradição de seu próprio povo e elevar sua mente através da meditação. A sabedoria universal dos antigos era a única mãe de todas as verdades, e deixando de lado as querelas sectaristas os povos poderiam viver uma vida cheia de reverência mútua, compromisso com a humanidade e compaixão para com todas as criaturas. A prática da contemplação, como indicava Plotino, deveria passar através dos estágios da opinião, limitada pelos sentidos e pela percepção; da ciência, baseada na dialética; e enfim atingindo a iluminação intuitiva. Amonius ensinava que a memória, também caracterizada por Olimpiodoro como fantasia, era a inimiga do êxtase divino da alma, e o primeiro obstáculo para a clarividência espiritual. Mas, dizia Amonius, para a alma pura não seria estranho que outras almas semelhantes revelassem a ela visões e concepções nobres através de seu toque. Seus ensinamentos mais preciosos eram secretos na melhor tradição de Pitágoras, e seus discípulos não os revelaram.

Como Apolónio antes dele, Amonius ensinava que a sabedoria mais profunda devia ser encontrada nas tradicionalmente honoráveis filosofias do Oriente. Ele remontava as origens de sua escola à mesma origem das de Platão e Pitágoras - os Livros de Toth-Hermes. As doutrinas deste Thot ou seu "colégio", dizia, se originaram com os primeiros sábios Brâmanes da Índia. A tolerância universal de Amonius é característica do catenoteísmo da verdadeira tradição Hermética que jamais adorou "um deus" individual, mas sempre "os Deuses Unos" de todas as teogonias. Ele ensinou seus discípulos a não venerar as imagens exotéricas e supersticiosas dos diversos deuses, mas procurar por hypnóia, ou "significado oculto" destes deuses. Seus discípulos vieram a ser chamados de Analogistas por causa de seu ensinamento de que todas as lendas, mitos e mistérios sacros deviam ser entendidos à luz do princípio da analogia e correspondência, onde todos os eventos externos manifestados representam processos interiores e operações da alma. Este ecletismo, que foi delineado por Diógenes Laércio até o Pot-Amon ptolemaico, era, para Amonius, central para a pesquisa da Universal Sabedoria Divina - a Theosophia - dos antigos. Aplicando estes princípios, Amonius procurou demonstrar, por exemplo, que as filosofias de Platão e Aristóteles poderiam ser harmonizadas se correctamente entendidas, e que se o Evangelho segundo São João fosse tomado em seu fundamento filosófico, a doutrina Cristã poderia ser vista como uma expressão autêntica da sabedoria perene. Jesus, ele ensinava, foi um homem excelente e "amigo de Deus", que buscou reinstituir e restaurar a pristina sabedoria dos antigos à sua integridade original, purgando a religião popular de seu acúmulo de conceitos, mentiras e superstições, e expondo os princípios filosóficos necessários à uma vida de pura devoção. Amonius sustentava que o sectarismo surge pelo amálgama da superstição com a fraqueza humana. Quem não pratica a vida filosófica invariavelmente corromperá tanto a filosofia como a religião, personalizando e materializando-as. A escola de Amonius existia longe dos círculos da moda de sua época. Os estudantes se lhe eram atraídos um a um, muitas vezes depois de considerarem estéreis os ensinamentos convencionais dos outros, e cada um estudaria com ele e depois iria pelo mundo para praticar o que havia aprendido, de acordo com seu melhor entendimento. A escola de Amonius era dividida em três graus - neófitos, iniciados e mestres - e todos eram ligados por votos e juramentos de preservar o segredo dos ensinamentos de seus respectivos graus. As regras da escola eram derivadas dos Mistérios de Orfeu, que, segundo Heródoto, foram trazidos da Índia.

Entre os discípulos mais importantes de Amonius estava Orígenes Adamâncio, o Cristão, que mais tarde se tornou o director da escola catequética em Alexandria, onde se distinguiu como o mais habilidoso porta-voz da nova fé no mundo Mediterrâneo. Seus extensos comentários alegóricos e espirituais sobre as escrituras do Velho e Novo Testamentos deram origem à tríplice interpretação da escritura - literal, simbólica e espiritual - que influenciou poderosamente os pensadores da Renascença, incluindo Pico della Mirandola. Orígenes também ensinava uma doutrina de reencarnação e de perfectibilidade através de meios e esforços auto-desenvolvidos. Orígenes foi solicitado pela Igreja para refutar os escritos de Celso, também um membro da escola de Amonius. Celso havia demonstrado que as formas originais e mais puras da doutrina Cristã haviam de ser encontradas nos ensinamentos de Platão. Ele também havia acusado o Cristianismo popular de aceitar os elementos mais supersticiosos do pensamento pagão e de interpolar passagens mal-entendidas do Livro das Sibilas nas suas doutrinas. Orígenes conseguiu citar Celso copiosamente, mas fez pouco para refutá-lo, de modo que na altura do século V a Igreja não teve recurso senão ordenar a destruição de todos os escritos de Celso. É dito que uma cópia de seu Verdadeira Doutrina ainda sobrevive nos recessos do Monte Athos.

Muitos dos discípulos de Amonius buscaram demonstrar a sabedoria universal que subjaz nas várias tradições, incluindo um segundo Orígenes que estudou com Amonius e se tornou filósofo Neoplatônico e escreveu comentários sobre vários diálogos. Erênio, um outro estudante, destacou-se ao definir a metafísica como aquilo que está por trás da esfera da natureza. Longino, um filólogo mais do que um filósofo, levou as idéias de Amonius para o âmbito político como ministro da Rainha Zenóbia de Palmira. Ele é identificado como o autor do Sobre o Sublime, uma obra substancial e penetrante sobre a estética. Porfírio estudou com Longino antes de se tornar um discípulo de Plotino. O próprio Plotino foi o mais ilustre discípulo de Amonius, estudando com o mestre por onze anos antes de fundar uma escola própria em Roma. Como Amonius, ele era conhecido por uma vida de simplicidade, integridade e pureza, e não confiou seus ensinamentos ao escrito até que foi convencido disto por seus discípulos, tarde na vida. Sua Enéadas, organizadas por Porfírio, é a mais profunda elaboração do pensamento Neoplatônico.

Os discípulos de Amonius receberam vários nomes associados às suas actividades, mas talvez o mais significativo foi o de Filaleteus - amigos da verdade - porque estavam abertos à sabedoria onde quer que ela pudesse ser encontrada. Também eram conhecidos como Extáticos, porque buscavam, através da meditação, a união consciente com a fonte inefável que transcende todas as limitações de forma e matéria. Amonius chamava sua filosofia espiritual de Teosofia Eclética, pois ele buscava a Sabedoria Divina em todas as tradições que a preservavam em suas doutrinas veladas e nos seus fragmentos imaculados da verdade. Amônio morreu em torno da metade do século III, mas sua escola perdurou até o início do século V e as depredações de Teófilo e São Cirilo, o assassino de Hipátia. Em Roma, através da escola de Plotino, e em Atenas, através da Academia revitalizada com Neoplatônicos como Proclo, os ensinamentos de Amonius continuaram a fermentar o mundo Mediterrâneo até o início do século VI. Depois, com o zeloso sectarismo de Justiniano, a Academia foi fechada e suas propriedades confiscadas. Os últimos sete homens sábios do Oriente, o grupo de Neoplatônicos remanescentes, partiu para a Pérsia e Índia, e o reinado da sabedoria terminou. Os Filaleteus não mais existiam e os sagrados Livros de Thot-Hermes não tinham intérpretes na Europa Cristã. Amonius havia ensinado os segredos dos Mistérios como e quando apropriado, não registando nada, mas abrindo tantas portas quantas em que a pessoa pudesse sabiamente adentrar. Ele trabalhou pelo o futuro em meio das limitações de sua época. A marca que deixou na história da aspiração humana é tão profunda e durável quanto invisível. Mesmo quando a estrutura institucional e a prática dos Mistérios estavam rapidamente entrando em decadência, ele as estabeleceu em uma nova fundação que as garantiu para indivíduos que chegariam a elas separadamente, com a vontade e capacidade de seguir as disciplinas mentais e morais necessárias para descerrar a porta do espírito imortal.


(Fonte: Levir)

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