A doutrina rosacruciana afirma uma dualidade activa de Deus - a sua emissão ou emanação, que é a Força, e a sua retirada (retrait) ou imanação, que é a Matéria. A primeira parte do acto divino, a acção, está neste nosso mundo final representada pelo Homem; a segunda, ou desacção, pela Mulher. Os próprios órgãos sexuaes de um e de outro indicam, por assim dizer, graficamente, esse íntimo sentido. Primitivamente, Homem e Mulher eram um só, na perfeita imagem e semelhança de Deus que, ainda in posse como criador, continha em si as duas naturezas, pois, se as não contivesse, as não poderia desenvolver in acto. «Retirada» a mulher do homem, à imagem e semelhança da «retirada» de Deus do mundo, seguiu-se este mundo que temos, à imagem e semelhança da dualidade activa de Deus.
Para que o adepto possa realizar em si, pois tal é o seu mister, a dualidade activa de Deus, é preciso, primeiro, que seja homem, pois a emissão é a primeira condição activa de Deus. É preciso, porém, que em seguida se torne mulher, o que só pode fazer «retirando-se» de ser homem, tornando passivo o que nele se destinara a ser activo. De aí a exigência rosacruciana, não da simples castidade, que é uma «retirada» temporaria ou condicional, e portanto relativa, mas da virgindade, que é a «retirada» absoluta, idêntica, pois, enquanto absoluta, à «retirada» divina.
(Acresce, vindo ao mundo físico, que a castidade masculina, sendo completa, como deve ser, compele o sémen formado a recolher, a ser reintegrado pelo corpo, entrando para o sangue. E d'este modo o indivíduo, por assim dizer, se fecunda a si mesmo, sendo, interiormente, a sua própria mulher. Isto é, porém, o simples reflexo no mundo físico…)
A Força, emissão de Deus, ou Deus emisso, é representada pelo símbolo fálico, ou seja uma vertical: |.
A Matéria, imissão de Deus, é representada pelo sinal contrário, uma horizontal: —. A conjugação das duas, que é Deus na sua manifestação mundana total, é pois, ou a chamada cruz cósmica, +, em por serem iguais as linhas, os quatro braços são iguais; ou o chamado Tau, Â, em que as duas linhas devem ser iguais também. A primeira representa o mundo físico na sua generalidade, a segunda o mundo físico na sua particularidade humana, isto é, sexual -não a união, mas a junção, das duas naturezas.
As duas linhas, de qualquer dos dois modos unidas, representam, porém, a natureza abstracta do mundo e da humanidade - a Força e a Matéria, o Homem e a Mulher, em sua simples existência e potencialidade. A sua união ou junção activa e fecunda não está ali figurada. Para isso adopta-se um segundo símbolo de Mulher, um símbolo «aberto», cuja razão de ser não carece de explicação. Esse símbolo é o disco ou círculo: O.
De aqui partem novos símbolos. O primeiro, indicando a fecundação abstracta e absoluta, é o disco ou círculo com um ponto no meio, ou seja a indicação visível do «centro», ou razão de ser, do círculo: ¤. É este, simultaneamente, um símbolo fálico, sendo o falo erecto visto de frente. Por essas duas razões se representa o Sol por este símbolo; o Sol é, ao mesmo tempo, o Espaço fecundado, feito vida, o corpo, ou a matéria ou «mulher» de Deus, e o Fecundador, ou «homem» da Terra.
Quando se quer representar a Natureza em sua fecundidade, inscreve-se o sinal total do Mundo dentro do círculo, formando o símbolo e, com que naturalmente se designa a Terra. É a fecundidade unindo, cercando, guardando os dois princípios. E quando se quer representar distintivamente a união fecunda dos princópios masculino e feminino, o círculo sobrepõe-se ao Tau, formando o símbolo t , sinal muito usado dos egípcios, cuja Trindade é uma trindade de fecundidade, visto que a formam Pai (Osiris), Mãe (Isis) e Filho (Horus). Neste Tau coroado está todo o mistério da geração dos seres.
Até aqui temos estado no âmbito, ou na região, do que podemos chamar a Natureza e a religião natural - a manifestação mundana de Deus. Desde que porém, lembrados por intuição, ou informados por iniciação, da sua origem divina e dos modos de essa origem, entre os homens surja o desejo de regressar a Deus e com ele se […], os homens tendem para Deus como Deus tendeu para o Mundo (que a mesma tendência criou), mas tendem em sentido inverso pois que o caminho e sentido do regresso é o da («retirada» ou imissão de Deus, e não o da sua emissão. Seremos deveras semelhantes a Deus, mas com pólos inversos, pois reproduzimos em nós masculinamente a parte feminina de Deus. O nosso caminho masculino será o caminho feminino de Deus. Intensificaremos o elemento masculino da vida, mas em sentido inverso, anti-fálico. E, como a linha fálica, ou masculina, |, se entende, por uma razão evidente, feita de baixo e para cima - e não como, ao escrever, por conveniência a traçamos -, construiremos o símbolo místico, anti-natural, prolongando para baixo a linha masculina, e fa-lo-emos, pelo mesmo motivo de anti-naturalidade, outro tanto quanto tinha para baixo, igual nisso a qualquer dos outros três braços da cruz cósmica. O símbolo místico ficará: Â , que é o que vulgarmente se chama a Cruz Cristã ou Cruz do Calvário. Esta Cruz significa, pois, o mundo em divi-nização, ou o caminho de Deus, ou seja a Redenção.
Se agora quisermos integrar na cruz mística, para que nada nela falte, o segundo símbolo feminino, o círculo, não o poderemos colocar senão ao centro da Cruz, como se nela estivesse crucificado; pois a Cruz mística nem é de braços iguais, para que o círculo se lhe possa circunscrever, nem é fechada em cima, como o Tau, para que se lhe possa sobrepor. O segundo símbolo místico será pois: Å. Da simples colocação do círculo resulta que dentro dele ficou uma cruz cósmica, de quatro braços iguais. Quer isto dizer, ao mesmo tempo, que o círculo fica «partido» e que a Terra fica «crucificada». Quer isto dizer que o caminho místico envolve a «quebra» de quanto em nós é tendencialmente «fecundo», e a «crucifixão» de quanto em nós o é realmente. O que em nós é tendencialmente fecundo é a nossa natureza sexual, que pode ser quebrada, isto é, inteiramente repudiada. O que em nós é realmente fecundo é a nossa natureza carnal - a que envolve a necessidade de comer, de dormir, e de outras coisas, da Carne (naturais), do Mundo (sociais), ou do Diabo (artificiais), que não podemos inteiramente repudiar, mas somente limitar. Assim o místico, em sua via divina, repudia, «quebra», a sua sexualidade; comprime, faz sofrer, «crucifica», a sua carnalidade. Por isso os votos místicos fundamentais são os de castidade e c natureza carnal - a que, como alguns, com melhor precisão, têm por hábito dizer. O chamado «terceiro voto», o de obediência, é puramente acidental, existindo só quando o místico está integrado numa Ordem qualquer, e só relativamente a essa Ordem. Não existe, nem poderia existir, para aqueles místicos e adeptos cuja iniciação lhes vem directamente dos Mestres.
Está claro que é este o símbolo na sua aplicação ao místico individual. No seu entendimento universal, indica, como é de ver, uma maior amplitude da ideia de Redenção, uma mais perfeita simbolização do Cristo. O que no homem é a sua natureza sexual e carnal é no Cristo a vida, sua natural «mulher», que Ele «quebra» ou repudia, elegendo a Morte como verdadeira Vida; e a Natureza, seu natural «corpo», que ele «crucifica» ou faz sofrer, elegendo a dor por sua natureza verdadeira. Quando o místico atinge o nível de repudiar em si o desejo à vida, de fazer sofrer em si tudo quanto o liga à Natureza, quando tanto o amor como a beleza para ele e nele morreram, identifica-se com Cristo, ascende ao que se chama a União com Cristo - termo da iniciação, começo da vida divina, o que se chama em certa linguagem o Grau de Mestre do Templo.
O círculo está «quebrado», e quebrado em cinco elementos, que são as quatro linhas e o centro, seu ponto de encontro ou confluência - os quatro elementos e a Alma; as quatro letras do nome divino e o Shin, letra do Espírito; os quatro lados do quadrado da perfeição e a Diagonal que os nega. Por isso se achou melhor figurar estes cinco elementos do ser quebrado por qualquer símbolo que distintivamente os apresentasse e os revelasse cinco com mais clareza que a contagem, necessariamente abstrusa e aparentemente forçada, das quatro linhas e do centro em que confluem. E assim, e para tal efeito, se figurou o círculo crucificado como tendo a forma de cinco semicírculos de um círculo de metade do original, assim: P .
O sinal da Terra está «crucificado» - da Terra, que é a cor e a beleza, e que com seus próprios elementos se crucificou, pois os braços da Cruz do Calvário são extensões dos da Cruz Cósmica que está contida no símbolo da Terra. E assim se veio a conceber esse símbolo de cinco elementos, ou pétalas, como sendo a Rosa, por ser esta flor o sinal externo da Beleza, e ainda o do Silêncio que está no centro da Beleza, e por ser a flor que contém em si os elementos do martírio ou sofrimento, que são os espinhos - elemento que não há em nenhuma outra flor das que possam simbolizar a Beleza. E por isso Àquele que foi a Rosa Crucificada, e em Si crucificou a Rosa, se impôs, em seu martírio, uma Coroa de Espinhos. E por isto se entende que esse elemento de cinco partes, que está crucificado e quebrado, é uma Rosa; e o símbolo cristão completo e final é o símbolo da Rosa-Cruz.
Fernando Pessoa