quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
«Deus contempla-Se no espelho das Águas porque Ele "era um tesouro escondido": vê nelas a Sua imagem reflectida. O homem é essa Imagem, mas imagem em queda, de cabeça para baixo, reflexo precário e amnésico nas "águas do Nilo", efémero como o correr do rio que é também o correr do tempo. Narciso enamorou-se da sua própria imagem no mesmo espelho das águas e o seu mito esconde - e revela! - a mesma nostalgia, a mesma saudade do Ser que se transformou em pálido reflexo de Si próprio, que todavia se reconhece nesse reflexo e no reflexo procura, ansioso, exultante, a origem divina, a Face que esconde a sua Face. Assim dividido e separado do seu ser, o âmago mais fundo do Eu precipita-se, loucamente, ao encontro de si próprio, em direcção a uma fusão sempre prometida mas jamais alcançada, no fluxo do tempo que foge, do tempo que é, ele próprio, a mesma queda e o mesmo esquecimento da Face. E eis que cresce a angústia da criatura, a surda saudade que lhe oprime o coração e nele faz nascer a impaciência de um algures diferente, de uma outra claridade, de uma aurora definitiva. Um pouco mais e esse sentimento de privação será sentido como reminiscência do Um sem dois, Nar-ciso antes da cisão. Começa aí a palinódia que inverte a fatalidade do movimento "para o mar" e faz correr o rio para a sua nascente.»
Lima de Freitas
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