sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Max Heindel: Em Busca do Templo Ignoto - António de Macedo




Max Heindel (1865-1919), um investigador e místico dinamarquês emigrado para a Escócia e mais tarde para os estados Unidos, tinha perfeita consciência desse sério escolho. Filho de pai alemão e mãe dinamarquesa, nasceu em Aarhus,  Dinamarca, em 23 de Julho de 1865 e o seu nome de baptismo era Carl Louis Fredrik von Grasshoff. Aos 16 anos partiu para Glasgow, na Escócia, onde estudou engenharia; viajou pelo mundo na qualidade de engenheiro chefe dum vapor comercial e entre os anos de 1895 e 1901 foi engenheiro consultivo na cidade de Nova York. Em 1903 mudou-se para Los Angeles e pôde dar largas aos estudos e investigações que o fascinavam, de metafísica e gnose espiritual. Adoptou o pseudónimo de Max Heindel e quando decidiu viajar de regresso à Europa, em 1907, para tentar descobrir os misteriosos Irmãos da Rosacruz, já tinha concluído que não servia de nada ler dezenas ou mesmo centenas de livros e estudar todos os rituais iniciáticos se quisesse atingir a iluminação.
Começara por se deixar cativar pelos ensinamentos de Helena Petrovna Blavarsky (1831-1891), e durante dois anos - 1904 e 1905 -, chegou a ser vice-presidente da Loja de Los Angeles da Sociedade Teosófica. Depressa porém se deu conta do confuso sincretismo das doutrinas «teosófica»(64) e da inextricável mistura de tradições que propugnam, como se Judaísmo, Cristianismo, Budismo e Hinduísmo se pudessem harmonizar rasteiramente na «base da Montanha», Insatisfeito com esta amálgama, Max Heindel pressentiu que o caminho do ocidente (a Via, a Verdade e a Vida») estaria traçado a partir do Alto da Montanha Sagrada na linhagem da Sabedoria Cristã, quer mística quer iniciática, e não numa mescla de tradições; abandonou a Sociedade Teosófica e empenhou-se numa nova busca.
Teve conhecimento que na Alemanha se evidenciava então um instrutor cujas conferências e cujos ensinamentos pareciam coincidir com a senda que aspirava percorrer: tratava-se de Rudolf Steiner (1861-1925), cientista, escritor e mais tarde fundador do movimento espiritual e filosófico conhecido por Antroposofia(65). Também Rudolf Steiner fora atraído pelas doutrinas de Madame Blavatsky, que ao contrário do que propalam os seus muitos detractores, e apesar da notória falta de sistematização dos seus escritos - de que sobressaem Isis Unveiled (1877) e TheSecret Doctrine (1888) -, vislumbrou verdades e conotações tradicionais com assinalável argúcia e desenvolveu pontos de vista audaciosos - comprováveis em muitos casos pelo seu copioso conhecimento das fontes - que justificam a considerável influência que exerceu na sua época e bastante depois.
Muito erros espalhou, sem dúvida, e as verdades que enuncia apresentam-se, por vezes, «disformes pelas turvações duma alma agitada de paixões diversas, de tal sorte que essas verdades assim reflectidas criam o efeito duma paisagem maravilhosa num espelho convexo», conforme observou Édouard Schuré na sua introdução à edição francesa de Das Christenthum als mystische Thatsache de Rudolf Steiner(66), mas não é totalmente correcto dizer-se, como faz Umberto Eco pela boca duma personagem de O Pêndulo de Foucault, que Madame Blavatsky se limitou a repetir, sob a falaz roupagem de coisa oculta, conhecimentos e pseudoconhecimentos que andavam por aí ao alcance de qualquer um(67).
Steiner contactou em 1897 uma filial da Sociedade teosófica, mas tal como Max Heindel, não prosseguiu essa via ao reconhecer que a senda da Sabedoria Ocidental não estaria em doutrinas budistas ou hinduístas, mas sim na tradição Cristã. Entretanto conseguira chegar ao alcance dos Mestres da Rosacruz, cujos ensinamentos absorveu preparando-se para empreender a magna tarefa de constituir uma Escola de Ocultismo a fim de ser transmitida, aos eleitos, a Iniciação Rosacruciana.
E é em Berlim que Max Heindel o encontra, no Outono de 1907, na sequência da viagem que empreendera, desde a América, arrastado pela sua ânsia de conhecimento místico e pela fama internacional de que já desfrutavam nessa época os cursos de Rudolf Steiner. Max heindel frequentou esses cursos e teve várias entrevista com Steiner mas logo se deu conta de que os ensinamentos deste não acrescentavam nada ao que já sabia. Entre a desilusão e uma inequívoca admiração pela personalidade e pelos conhecimentos daquele instrutor, Max Heindel decidiu-se pelo regresso à América, e foi então que, ainda em Berlim e quando se aprestava a partiu, recebeu inesperadamente a visita de um doze Irmãos (Fratres Seniores) da Ordem Rosacruz, um dos Hierofantes dos Mistérios, que se prontificou a transmitir-lhe os ensinamentos desde que se comprometesse e mantê-los em segredo.
Durante anos Max Heindel buscara incansavelmente e suplicara aos céus que lhe fosse concedido algo que lhe permitisse mitigar a sede de luz espiritual que o mundo tanto anseia. Sabendo por experiência própria o que é sofrer devido à ânsia de conhecimento, foi incapaz de satisfazer o pedido do Irmão Maior, e recusou aceitar o que quer que fosse que não pudesse partilhar com os seus irmãos no mundo, que sabia tão animicamente famintos como ele.
O Mestre abandonou-o.
Podeis imaginar o que sente um homem que durante tanto tempo esteve privado de alimento, e repentinamente aparece alguém a oferecer-lhe uma côdea de pão, e logo se retira sem lhe permitir que a prove?
[...]
No meio do seu desespero e da frustração de ter perdido tempo e dinheiro numa viagem inútil, apareceu-lhe o Mestre de novo ao fim de cerca de um mês, e disse-lhe que tinha passado a prova do egoísmo: se tivesse aceite a oferta de guardar os conhecimentos sem os partilhar, ele, o Mestre, não teria regressado"
Disse-lhe também que houvera um primeiro candidato escolhido pelos Irmãos Maiores que recebera instruções durante vários anos mas que falhara a prova em 1905, e que sendo ele, Max Heindel, o segundo candidato em vista, os Mestres se haviam servido do primeiro - que não era outro senão o próprio Steiner - como isco para o atrair à Alemanha.
Após várias entrevistas, o Frater Senior deu-lhe as instruções necessárias para encontrar o Templo da Rosacruz nas imediações duma aldeia chamada Kirchberg, que nesse tempo se situava em território alemão, perto da fronteira com a Boémia. Max Heindel esteve durante mais de um mês, no Templo, em comunicação directa com os Mestres por quem foi iniciado, ficando encarregado de disseminar no Ocidente os respectivos Ensinamentos da Nova Era Cristã.
Quando entrou pela primeira vez no Templo da Irmandade Rosacruz, Max Heindel surpreendeu-se: na sua imaginação havia figurado esse centro como uma imponente e magnífica estrutura, e o que viu era exactamente o oposto. Foi convidado a entrar no que parecia ser a casa rural, modesta embora espaçosa, de um cavalheiro da província, residência que ninguém associaria à sede mundial de um tão antigo quão poderoso grémio de místicos. Centenas de homens e mulheres, levados pela curiosidade, têm percorrido a Alemanha na esperança de encontrar esse edifício e passam por ele sem o ver, porque, tal como Max Heindel, imaginam-no como um Templo grandioso de pedra e materiais nobres. E Heindel só o descobriu quando os seus olhos se abriram para vislumbrar o Templo espiritual a interpenetrar e a envolver a estrutura física(69).
Ao regressar aos Estados Unidos Max Heindel redigiu e publicou em 1909, em Chicago, um volumoso tratado sob inspiração directa dos Irmãos Maiores, The Rosicrucian Cosmo-Conception(70), e mais tarde fundou em Oceanside, na Califórnia, uma Escola preparatória, The Rosicrucian Fellowship a qual, convém deixar bem explícito desde já, não é a Escola de Mistérios Rosacruzes, é apenas uma escola no mundo visível que prepara todo aquele que aceite percorrer os progressivos e ordenados passos que o hão-de conduzir àquela elevada Escola de Mistérios. E interessante notar que Rudolf Steiner publicou em Leipzig, em 1910, um dos seus livros mais importantes, Die Geheimwissenschaft im Umriss («A Ciência Secreta em Esboço»), com desenvolvimentos doutrinários e passagens inteiras que parecem extraídos para não dizer copiados de The Rosicrucian Cosmo-Conception, publicado como vimos no ano anterior. Pessoalmente não creio que tenha havido plágio, incluso de Max Heindel que poderia ter aproveitado os apontamentos dos cursos e das conferências de Steiner a que assistira em Berlim: e não creio que isso tenha acontecido não só atendendo à estatura moral, espiritual e intelectual dos dois homens, como também ao que sobressai do conjunto das respectivas obras. Por muito estranho que pareça esta é também a opinião, ainda que relutante, do avinagrado René Guénon(71)que dnha um ódio vesgo contra tudo o que lhe cheirasse a «teosofismo» - termo que utiliza para o distinguir da autêntica teosofia tradicional e lhe serve de rótulo a um estendal de concepções e doutrinas de que discorda e vão de Madame Blavatsky a Alice Bailey, passando pelos ditos Heindel e Steiner. Se Guénon reconhece que nenhum deles plagiou, podemos estar seguros de que assim foi. A única explicação plausível, portanto, e que só pode ser a verdadeira, é que tendo tido ambos os mesmos Mestres Rosacrucianos, as suas obras e respectivos ensinamentos hão-de apresentar determinadas semelhanças; mas ao passo que Max Heindel se manteve fiel à tradição Cristã e Rosacruz, Steiner a breve trecho se desviou introduzindo no seu sistema elementos espúrios.
Lendo e estudando The Rosicrucian Cosmo-Conception e outros livros que Max Heindel escreveu, como Letters to Stundents, The Rosicucian Mysteries, Gleanings of a Mystic, Web of Destiny, Mysteries of the Great Operas, Teachings of an Initiate, etc.(72), dei-me conta duma sensação nova, muito forte e muito real, depois de tanto tempo andar errante à procura da Fonte ou de quem quer que dela directamente tivesse haurido: eis-me pela primeira vez em contacto - admirável, ardente e afectuoso contacto! - com alguém que «tinha lá estado».
O que Max Heindel descrevia possuía o incontestável cunho da sinceridade, era a expressão apaixonada e genuína de quem fora admitido aos Mistérios e subira os luminosos degraus, as observações eram autênticas, plenas, nada de palavreado vazio e inane, era a voz revelada e reveladora dum surpreendente rol de «reportagens» vividas e cheias de emoção mística... - não à maneira do filósofo-visionário Emanuel Swedenborg (1688-1772), que descreve miudamente as suas explorações pelas inúmeras moradas invisíveis e pelos graduais planos dos céus e dos infernos por onde o seu espírito andou (teria andado?), com a clínica frieza do médico legista a dissecar corpos peça a peça -, mas à maneira quase duma criança a relatar em tom cândido e fácil, sem surpresas e com aceitação, uma deslumbrante, diáfana, experiência nova. Não deixa de ser elucidativo o primeiro parágrafo, na primeira página, com que abre The Rosicrucian Cosmo-Conception:
O fundador da Religião Cristã proferiu uma máxima oculta quando disse: «Em verdade vos digo, quem não receber o Reino de Deus como uma criancinha nele não entrará» (Mc 10, 15). Todos os ocultistas reconhecem a imensa importância deste ensinamento de Cristo e esforçam-se por vivê-lo dia a dia.
Sobretudo é quase comovente senti-lo ansioso, a ele Max Heindel, por partilhar, com quem esteja disposto ao esforço ascensional, o segredo dos caminhos que se hão-de sofrer e seguir e que se revelam afinal tão claramente traçados nas Escrituras cristas. Aceitei o convite, embora - ai de mim! - a lonjura do horizonte e a vastidão da esfera sejam tão de mais para a minha pequenez.
Mas toda a jornada começa sempre por um primeiro dia, infante, de escola.
E por falar em escola, volto um pouco atrás para frisar que aquela Escola preparatória - The Rosicrucian Fellowship, conforme citei -, fundada por Max Heindel por inspiração dos Irmãos Maiores, representa um arranque inteiramente novo na obra da Ordem Rosacruz (73) , e é dirigida invisivelmente pelos mesmos Irmãos Maiores da Ordem sob a direcção de Christian Rosenkreuz, ou do Grão-Mestre incógnito que adoptou este nome simbólico, sendo assim a referida Escola como que uma «reencarnação», no mundo visível, da antiga Ordem Rosacruz instituída por Rosenkreuz. Trata-se portanto duma ressurgência decidida a partir dos Planos Superiores: por outras palavras, apareceu mediante renascimento num local inteiramente novo, a fim de transmitir os Ensinamentos da Sabedoria Ocidental às populações do Ocidente. Não pretende descender em linha recta ou oblíqua - tal como outras sociedades se arrogam - de quaisquer lojas rosacrucianas anteriores, existentes na América, na Inglaterra, em França, no Egipto ou em outros locais, por muitos antigas que sejam - e quanto mais antigas e extintas pior, como vimos. The Rosicrucian Fellowship está em permanente ligação directa com o Templo etérico da Ordem Rosacruz em virtude de ser o canal ou instrumento autorizado da Ordem para a Era actual (74).

«Tanto Helena P. Blavatsky como Max Heindel ofereceram as suas vidas em serviço às necessidade espirituais da raça. Cada um deixou como legado às gerações vindouras uma literatura metafísica que sobreviverá ás vicissidades dos tempos».
Manly P. Hall (33.º Rito Escocês)

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Notas:
(64) Os termos «teosofia» e «teosófico» devem com legitimidade aplicar-se a uma corrente espiritual que abrange século de existência e conta com nomes tão diferentes e tão profundos como Meister Eckehart, Nicolau de Cusa, Paracelso, Giordano Bruno, Jacob Bohme, Johann Georg Gichtel, Swedenborg, Eckartsusen, Friedrich Schelling, entre outros, além dos mais conceituados autores do Iluminismo Rosacruz a que me referi mais atrás. A expressão «teosofia» (sabedoria de Deus) foi usada pela primeira vez no século II por Ammonio Saccas de Alexandria, mestre de Orígenes, que a foi buscar a Paulo: «Nós prègamos um crucificado; para os judeus, escândalo; para os gentios, escultícia; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, fortaleza de Deus e sabedoria de Deus [gr. Theou sophian]» (1Cor 1, 24), e também: «Sabedoria, sim, falamos entre os perfeitos; não sabedoria deste mundo nem dos chefes deste mundo, condenado a perecer, mas sabedoria de Deus [gr. theou sophian] em mistério, a oculta, que Deus predestinou dos séculos para glória nossa»(1Cor. 2, 7). - A sociedade que Helena P. Blavatsky fundou em Nova York em 1875 começou por ser uma sociedade espírita, e o nome The Theosophical Society foi-lhe dado pelo seu tesoureiro, Henry J. Newton, que na verdade ignorava o real significado daquela palavra. Registe-se, como curiosidade, que a Igreja católica condenou a Sociedade Teosófica em 1919.
(65) É possível que Steiner se tenha inspirado no título duma obra do Rosacruciano Eugenius Philalethes, pseudónimo de Thomas Vaughan: Anthroposophia Magia, Oxford 1650.
(66) Édouard Schuré, «Introduction» apud Rudolf Steiner, Le Mystère chrétien et les Mystères antiques (Das Christenthum als mystische Thatsache, Berlim 1902), trad. e introd. de E. Schuré, Paris 1908, pp. 28-29.
(67) O lâma Kazi Dawa Samdup (1868-1923), mestre tibetano que atingira um elevado grau de conhecimentos e que 1919 traduziu para inglês com colaboração com Prof. W.Y.Evans-Wentz o Bardo Thodol («Livro dos Mortos Tibetano»), considerava que a despeito das críticas que lhe eram dirigidas, H.P.Blavatsky teria incontestavelmente recebido um ensino lamaico superior, tal como ela dirigidas, H. P. Blavatsky teria incontestavelmente recebido um ensino lamaico superior, tal como ela prendia (cf. a introdução de Evans-Wentz a The Tibetan Book of the Dead, nota de rodapé na p. vi). - Fernando Pessoa já suspeito o mesmo escreveu: «Os caminhos do simbolismo, sobretudo desde que se entra na estrada mística ou interpretativa, são cheios de ilusões, de devaneios e de fraudes. […] É fora de dúvida que Madame Blatsky era um espírito confuso e fraudoso; mas também é fora de dúvida que recebera uma mensagem e uma missão de Superiores Incógnitos» (Yvette K. Centeno, Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética - Fragmentos do espólio, Lisboa 1985. pp. 51-52).
(68) Augusta Foss Heindel, Memoirs about Max Heindel and The Rosicrucian Fellowship, Oceanside 1997.
(69) Augusta Foss Heindel, op.cit., p.7. - Gostaria de salientar que a Autora utiliza a expressão Templo espiritual no sentido anagógico ou transcedental, referindo-se ao conteúdo; quando à matéria, o Templo é etérico. Sabe-se que esse templo, invisível aos olhares profanos, se situa a 50º de Lat-Norte e 13º de Long-Este, ou seja, na actual república Checa, alguns a Nordeste de Marianske Lazne (antiga Marienbad) e a Sueste de Karlovy Vary.
(70) Existe em português com o título: Conceito Rosacruz do Cosmo.
(71) René Guénon, Le Théosophisme: Histoire d'une Pseudo-Religion (1921), nova ed. aumentada Paris 1986, p. 221.
(72) Além do Conceito Rosacruz do Cosmo, os livros mencionados estão traduzidos em português com os títulos: Cartas aos Estudantes, Os Mistérios Rosacruzes, Colectâneas de um Místico, A Teia do Destino, Mistérios das Grandes Óperas, Ensinamentos de um Iniciado, etc.
(73) Cf. «Rosicrucian Societies in America », in Rays from the Rose Cross, vol. 88, n.º 4, July/August 1996.
(74) Max Heindel, The Rosicrucian Cosmo-Conception or Mystic Christianity (1909), reed. Oceanside 1977, pp. 530-532.



António de Macedo 
Instruções Iniciáticas
Hugin, Lx, 2000


quarta-feira, 27 de outubro de 2010




Homem de Desejo, Irmão desconhecido, tu que marchas para Tebas, em qualquer região das nossas terras onde te encontrares, é em ti e é a ti que me dirijo, porque, nos desertos preparatórios, aprendeste a nossa língua materna e os verbos primitivos dos nossos Anciãos, como nós, de luminosas tochas, ó viajante desconhecido a quem amo como um irmão.

Marc Haven

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A Metafísica Oriental - René Guénon


A Metafísica Oriental

por 

René Guénon




Tomamos, como tema desta exposição, a metafísica oriental; teria sido melhor, talvez, dizer simplesmente a metafísica, sem qualificativos, pois na verdade a metafísica pura, situando-se, por essência, acima e além de todas as formas e todas as contingências, não é nem oriental nem ocidental: é universal. Somente as formas exteriores — com as quais ela se reveste para atender às necessidades de exposição, para exprimir o quanto, nela, seja exprimível — somente tais formas é que podem ser orientais ou ocidentais; mas, sob a diversidade delas, é um fundo idêntico que se reencontra por toda a parte e sempre, ao menos, onde haja metafísica verdadeira, e isto pela simples razão de que a Verdade é uma e única. 
            
                     Se assim é, por que falar especificamente de metafísica oriental?  É que, nas condições intelectuais em que se encontra atualmente o mundo ocidental , a metafísica é  nele coisa esquecida , geralmente ignorada e quase que inteiramente perdida, enquanto que no Oriente ela é, ainda e sempre, objeto de um conhecimento efetivo. Se desejamos saber o que é a metafísica, é portanto ao Oriente que devemos nos dirigir; e, mesmo que desejemos reencontrar alguma coisa das antigas tradições metafísicas que tenham podido existir no Ocidente, — num Ocidente que, sob muitos  aspectos, estava então muito mais próximo do Oriente do que está hoje —, será sobretudo com a ajuda das doutrinas orientais, e mediante comparação com elas, que poderemos chegar a tanto, porque essas doutrinas são as únicas que, no domínio metafísico, ainda podem ser estudadas diretamente. Só que, para isso, é evidente que se deve estudá-las tal como o fazem os orientais mesmos, e não entregando-se a interpretações mais ou menos hipotéticas, e às vezes inteiramente fantasistas;  costuma-se esquecer, com demasiada freqüência, que as civilizações orientais ainda existem, e que possuem ainda representantes qua¬lificados, junto aos quais bastaria informar-se para saber verdadeiramente do que se trata. 
    
                     Dissemos  "Metafísica oriental'; e  não  "Metafísica hindu"  unicamente,  porque as   doutrinas dessa ordem, com tudo aquilo que implicam, não se encontram somente na Índia, ao contrário do que parecem crer alguns, que de resto mal se dão conta da sua verdadeira natureza. O caso da Índia não é de forma alguma excepcional sob esse aspecto; é exatamente o mesmo de todas as civilizações que possuem aquilo que se pode chamar uma base tradicional. O que é excepcional e anormal, ao contrário, são civilizações desprovidas de tal base; e, para dizer a verdade, só conhecemos um único caso desses, que é o da civilização ocidental moderna. Tomando em consideração somente as principais civilizações do Oriente, o equivalente da metafísica hindu encontra-se na China, no Taoísmo; encontra-se também, por outro lado, em certas escolas esotéricas do Islam (deve ficar bem entendido, aliás, que esse esoterismo  islâmico nada tem de comum com a filosofia externa dos árabes, na maior parte de inspiração grega). A única diferença é que, fora da Índia, tais doutrinas são reservadas a uma elite mais restrita e mais fechada; foi também o que se deu no Ocidente, na Idade Média, num esoterismo comparável, sob muitos aspectos, ao do Islam e tão puramente metafísico quanto este, mas de cuja existência os modernos, na maior parte, sequer suspeitam. Quanto à Índia, não é possível falar de esoterismo, no sentido próprio da palavra, porque lá não se encontra uma doutrina de duas faces, uma exotérica outra esotérica; o que pode ocorrer é simplesmente um esoterismo natural, no sentido de que cada um se aprofundará  mais ou menos na doutrina e irá mais longe ou menos longe conforme a medida das suas possibilidades intelectuais, desde que há, para certas individualidades humanas, limitações que são inerentes à sua natureza mesma, e que lhes é impossível superar. 

                     Naturalmente, as formas mudam de uma civilização para outra, pois que devem ser adaptadas a condições diferentes; mas, embora mais acostumado às formas hindus, não tenho nenhum escrúpulo em empregar outras em caso de necessidade, quando podem contribuir para a compreensão de certos pontos; não há nisto nenhum inconveniente, já que se trata, afinal, de diferentes expressões da mesma coisa. Novamente, aqui, a verdade é uma, e é a mesma para todos aqueles que, por qualquer via que seja, tenham chegado ao seu conhecimento.       

                    Dito isto, convém entendermo-nos quanto ao sentido que se deve dar aqui à palavra "metafísica", tanto mais que tenho tido freqüentemente a ocasião de constatar que nem todo mundo a compreende da mesma maneira. Penso que o melhor a fazer com as palavras que podem dar margem a algum equívoco é restaurar, tanto quanto possível, sua significação primária e etimológica. Ora, de acordo com sua composição, a palavra “metafísicia” significa literalmente  "além da física", tomando-se a palavra "física" na acepção que ela sempre tinha para os antigos, que era a de "ciência da natureza" em toda a sua generalidade.  Física é o estudo de tudo aquilo que pertence ao domínio da natureza; o que diz respeito à metafísica é aquilo que está para além da natureza. Como então podem alguns alegar que o conhecimento metafísico é um conhecimento natural, seja quanto ao seu objeto, seja quanto às faculdades pelas quais esse conhecimento é obtido? Há nisto um verdadeiro contra-senso, uma contradição nos próprios termos; e entretanto, o que é mais assombroso, acontece que essa confusão é cometida por aqueles mesmos que deveriam ter conservado alguma idéia da verdadeira metafísica e saber distingui-la mais nitidamente da pseudo-metafísica dos filósofos modernos. 

                  Mas, dirão, se essa palavra "metafísica" dá margem a tais confusões, não valeria mais renunciar ao seu emprego e substituí-la por uma outra que apresentasse menos inconvenientes? Na verdade isso seria desaconselhável, já que, por sua formação, essa palavra convém perfeitamente àquilo de que se trata — e de resto não é possível fazê-lo, porque as línguas ocidentais não possuem nenhum outro termo que seja tão bem adaptado a esse uso. Empregar pura e simplesmente a palavra "conhecimento", como se faz na Índia, — uma vez que se trata, com efeito, do conhecimento por excelência, o único absolutamente digno desse nome — é algo que não se deve nem pensar; pois isso seria ainda menos claro para os ocidentais, que, em matéria de conhecimento, estão habituados a não ter em vista nada fora do conhecimento científico e racional. - E, afinal, será necessário preocuparmo-nos tanto com o abuso que se fez de uma palavra? Se devêssemos rejeitar todas as palavras que estão nesse caso, quantas restariam ainda à nossa disposição? Não bastará tomarmos as precauções devidas para afastar os enganos e os mal-entendidos? Não temos pela palavra "metafísica" um apego maior do que por qualquer outra; mas, enquanto não nos houverem proposto  um melhor termo para substituí-lo, continuaremos a nos servir dele, como o temos feito até agora. 

               Infelizmente, há pessoas que têm a pretensão de "julgar" aquilo que ignoram, e que, por darem o nome de "metafísica” a um conhecimento puramente humano e racional (o que, para nós, não é senão ciência ou filosofia), imaginam que a metafísica oriental não seja nada mais do que isso, nem nada de diferente disso, - e daí tiram logicamente a conclusão de que essa metafísica não pode conduzir  realmente a tais ou quais resultados Todavia, é a esses resultados que ela conduz efetivamente, mas por ser uma coisa totalmente diversa daquilo que supõem; tudo aquilo que eles têm em vista não possui verdadeiramente nada de metafísico, desde que não é mais do que um conhecimento de ordem natural, um saber profano e exterior; não é de nada disso que desejamos falar. Tomaríamos, então, "metafísica" como sinônimo de "sobrenatural"? Aceitaríamos de bom grado tal assimilação, de vez que, enquanto não ultrapassamos a natureza, isto é, o mundo manifesto em toda a sua extensão (e não apenas o mundo sensível, que não é, dele, senão um elemento infinitesimal), estamos ainda no domínio da física; o que é metafísico, como dissemos, é aquilo que está além e acima da natureza, é portanto, propriamente o "sobrenatural". 

                Mas, sem dúvida, farão aqui uma objeção: será possível ultrapassar assim a natureza? Não hesitaremos em responder de maneira bastante nítida: não somente isso é possível, mas isso é.   Não passa de uma afirmação, dirão ainda: que provas se poderia oferecer disso? É verdadeiramente estranho que alguém peça provas da possibilidade de um conhecimento, em vez de tentar averiguá-lo por si mesmo mediante o trabalho necessário para adquiri-lo. Para quem possui tal conhecimento, que interesse e que valor podem ter todas essas discussões? O fato de substituir a "teoria do conhecimento" ao conhecimento mesmo é talvez a mais bela declaração de impotência da filosofia moderna. 

                 Existe, aliás, com toda certeza, alguma coisa de incomunicável; ninguém pode atingir realmente um conhecimento qualquer senão através de um esforço estritamente pessoal, e tudo o que um outro pode fazer é mostrar-lhe a ocasião e os meios de lá chegar. Eis porque, na ordem puramente intelectual, seria vão pretender impor qualquer convicção; a melhor argumentação não poderia, no caso, substituir o conhecimento direto e efetivo. 

                Agora: pode-se definir a metafísica, tal como a entendemos? Não, porque definir é sempre limitar, e aquilo de que se trata é, em si, verdadeiramente e absolutamente ilimitado, portanto não poderia deixar-se encerrar em nenhuma fórmula e em nenhum sistema. Pode-se caracterizar a metafísica de uma certa maneira, por exemplo dizendo que ela é o conhecimento dos princípios universais; mas isto não é propriamente uma definição e, de resto, não pode dar senão  uma idéia bastante vaga do que seja metafísica. Acrescentaríamos alguma coisa se disséssemos que o domínio dos princípios se estende muito mais longe do que pensaram certos ocidentais, — que entretanto fizeram metafísica, mas de uma maneira parcial e incompleta.  Assim , quando Aristóteles encarava a metafísica como o conheci¬mento do ser enquanto ser, ele a identificava com a ontologia, isto é, tomava a parte pelo todo. Para a metafísica oriental, o ser puro não é o primeiro nem o mais universal dos princípios, pois ele é já uma determinação; é preciso portanto ir além do ser, e aí está realmente aquilo que mais importa. Eis por que, em toda concepção verdadeiramente metafísica, deve-se sempre reservar a parte do inexprimível; e, com efeito, tudo o que se  pode exprimir não é literalmente nada em vista  daquilo que ultrapassa toda expressão, tal como o finito,  qualquer que seja a sua grandeza, é nulo em face do infinito. Podemos sugerir, muito mais do que exprimir, e este é, em suma, o papel que desempenham aqui as formas exteriores; todas essas formas, trate-se de palavras ou de símbolos quaisquer, não constituem mais do que um suporte, um ponto de apoio para nos elevarmos a possibilidades de concepção que as ultrapassem incomparavelmente; voltaremos a este assunto logo mais. 

                  Falamos de concepções metafísicas, por falta de outro termo à nossa disposição para nos fazermos compreender; mas não se vá crer, por isso, que exista nesse termo algo de assimilável à concepções científicas ou filosóficas; não se trata de operar "abstrações" quaisquer, mas de tomar um conhecimento direto da verdade tal como ela é. A ciência é o conhecimento racional, discursivo, sempre indireto, um conhecimento por reflexo; a metafísica é o conhecimento supra-racional, intuitivo e imediato.Essa intuição intelectual pura, sem a qual não existe metafísica verdadeira, não deve aliás, de maneira alguma , ser assimilada à intuição de que falam certos filósofos contemporâneos, pois esta é, ao contrário, infra-racional. Existe uma intuição intelectual e uma intuição sensível; uma está além da razão, mas a outra está aquém; esta última não pode apreender senão o mundo da mudança e do devir, isto é, a natureza, ou antes, uma ínfima parte da natureza. O domínio da intuição intelectual, ao contrário, é o domínio dos princípios eternos e imutáveis; é o domínio metafísico. 

                O intelecto transcendente, para apreender diretamente os princípios universais, deve ser ele mesmo de ordem universal: já não é mais uma faculdade individual, e considerá-lo tal seria contraditório, pois não pode estar nas possibilidades do indivíduo o ultrapassar seus próprios limites, sair das condições que o definem enquanto indivíduo. A razão é uma faculdade propriamente e especificamente humana; mas aquilo que está para além da razão é verdadeiramente "não-humano" ; é  isto o que torna possível o conhecimento metafísico, e este, há que repeti-lo, ainda não é um conhecimento humano. Em outros termos, não é enquanto  homem que o homem pode chegar a ele; mas  sim na medida em que esse ser, que é humano em um de seus estados, é ao mesmo tempo outra coisa e mais que   ser humano; e é a tomada de consciência efetiva dos estados supra-individuais que é o objeto real da metafísica, ou, melhor ainda, o conhecimento metafísico mesmo. Chegamos aqui portanto a um dos pontos mais essenciais, e é necessário insistir: se o indivíduo fosse um ser completo, se ele constituísse um sistema fechado à maneira da  mônada de Leibniz, não haveria metafísica possível; irremediavelmente encerrado em si mesmo, esse ser não teria nenhum outro meio de conhecer aquilo que não fosse da ordem  de existência à qual pertencesse. Mas de fato não é assim: o indivíduo não representa, na realidade, mais do que  uma manifestação transitória e contingente do ser verdadeiro; ele não é mais do que um estado específico entre uma multidão indefinida de outros estados do mesmo ser e este ser é, em si, absolutamente independente de todas as suas manifestações, do mesmo modo que, para empregar uma comparação que volta a cada instante a aparecer nos textos hindus, o sol é absolutamente independente das múltiplas imagens nas quais se reflete. Tal é a distinção fundamental do "Si" e do "eu", da personalidade  e  da individualidade; e, do mesmo modo que as imagens estão religadas pelos raios luminosos à fonte solar sem  a qual não teriam nenhuma existência nem realidade, do mesmo modo a individualidade - trate-se, aliás, da  individualidade humana ou de qualquer outro estado análogo   de manifestação—está religada à personalidade, ao  centro principial do ser, por meio desse intelecto transcendente que acabamos de mencionar. Não é possível, nos limites desta exposição, desenvolver mais completamente essas considerações, nem dar uma idéia mais precisa da  teoria dos estados múltiplos do ser; mas, penso, entretanto,  já ter dito o bastante a esse respeito para, ao menos, fazer pressentir a sua importância capital em toda doutrina verdadeiramente metafísica. 

                 Teoria, dissemos, mas não é apenas de teoria que  se trata, e este é ainda um ponto que pede explicação.  O conhecimento teórico, que ainda não passa de um conhecimento indireto e de certo modo, simbólico, não é mais que uma preparação, aliás indispensável, do verdadeiro conhecimento. Ele é, além do mais, o único que é comunicável, de certo modo, e mesmo assim não completamente; eis por que toda exposição não é mais do que um meio de abordar o conhecimento, e este conhecimento, que não é, de início, mais do que virtual, deve em seguida ser realizado efetivamente. Encontramos aqui uma nova diferença em relação àquela metafísica parcial a que fizemos alusão anteriormente, a de Aristóteles por exemplo, já  teoricamente incompleta por limitar-se ao ser, e na qual, além do mais, a  teoria parece ser apresentada como algo que se bastasse a si mesmo, em lugar de ser ordenada expressamente  em vista de  uma realização correspondente, assim como sempre o é em todas as doutrinas orientais. Entretanto, mesmo nessa metafísica imperfeita seríamos tentados a dizer, nessa semi-metáfísica,  encontramos  às   vezes afirmações que, se tivessem sido compreendidas,   deveriam ter conduzido à conseqüências inteiramente outras: assim, Aristóteles não chega a dizer nitidamente que um ser é tudo aquilo que ele conhece? Esta afirmação   da  identificação pelo conhecimento é o princípio mesmo da realização metafísica; mas, no caso, esse princípio permanece isolado, não tem mais valor que o de uma declaração inteiramente teórica, não se tira dela nenhum proveito, e parece que, após tê-la postulado, não se pensa mais nisso; como é possível que o próprio Aristóteles  e  seus continuadores não tenham visto melhor tudo aquilo que ela implicava? 

                     É verdade que o mesmo ocorre em  muitos outros casos, e que eles parecem esquecer às vezes coisas tão essenciais quanto a distinção entre o intelecto puro e a razão, após as terem entretanto formulado, e de maneira não menos explícita; são estranhas  lacunas . Deveríamos ver nisso o efeito de certas limitações que fossem inerentes ao espírito ocidental , salvo exceções mais ou menos raras, mas sempre possíveis? Isto   pode  ser verdade numa certa medida, mas, entretanto não se deve crer que a intelectualidade ocidental tenha   sido em geral tão estritamente limitada, outrora, quanto na época moderna. Só que doutrinas como estas não são afinal de contas mais do que doutrinas exteriores — bem  superiores a muitas outras, já que abrangem apesar de tudo  uma parte de metafísica verdadeira, mas sempre misturada  à considerações de outra ordem, que, por seu lado, nada têm de metafísica... Da nossa parte, temos a certeza de que no Ocidente já existiu algo de diferente, na Antiguidade e na Idade Média; que houve, para uso de uma elite, doutrinas puramente metafísicas e que podemos dizer completas, incluindo a mencionada realização,  a qual, para a maior parte dos modernos, é sem dúvida uma coisa difícil de conceber; se o Ocidente perdeu  também  totalmente a lembrança disso, é que ele rompeu com suas próprias tradições, e eis por que a civilização moderna é uma civilização  anormal e desviada. 

              Se o conhecimento teórico fosse por si mesmo a sua própria finalidade, se a metafísica devesse parar nisso, já seria alguma coisa, seguramente, mas seria inteiramente insuficiente. A despeito da certeza verdadeira - mais forte ainda que uma certeza matemática - que já está ligada a um tal conhecimento, ele não seria, em suma, senão um análogo, numa ordem incomparavelmente superior, daquilo que na sua ordem inferior, terrestre e humana, é a especulação científica e filosófica. Não é aí que deve estar a metafísica; que outros se interessem por um "jogo de espírito" ou por aquilo que pode parecê-lo, é assunto que somente a eles lhes diz respeito; quanto a nós, as coisas desse gênero nos são antes indiferentes, e pensamos que as curiosidades do psicólogo devem ser perfeitamente alheias ao metafísico. Para este, aquilo de que se trata é de conhecer aquilo que é, e de conhecê-lo de tal modo que ele mesmo seja, real e efetivamente, tudo aquilo que conhece. 

              Quanto aos meios da realização metafísica, bem sabemos qual objeção podem fazer, naquilo que lhes concerne, aqueles que crêem dever contestar a possibilidade dessa realização. Esses meios, com efeito, devem estar ao alcance do homem; devem, nos primeiros estágios, ao menos, ser adaptados às condições do estado humano, já que é nesse estado que se encontra atualmente o ser que, partindo daí, deverá tomar posse dos estados superiores. É, portanto, nas formas que pertencem a este mundo, onde se situa a sua manifestação presente, que o ser tomará um ponto de apoio para elevar-se acima deste mesmo  mundo; palavras , signos simbólicos, ritos ou procedimentos preparatórios quaisquer, não têm outra razão de ser nem outra função: como já dissemos, são suportes e nada mais. Mas, dirão alguns, como é possível que esses meios puramente contingentes produzam um efeito que os ultrapassa imensamente, que é de uma ordem inteiramente outra que não aquela à qual eles mesmos pertencem? Faremos desde logo notar que eles não são, na realidade, mais do que meios acidentais, e que o resultado que eles ajudam a obter não é de maneira alguma um efeito deles; eles colocam o ser nas disposições requeridas para chegar mais facilmente ao resultado, e nada mais. Se a objeção que temos em vista fosse válida nesse caso, ela valeria igualmente para os ritos religiosos, - para os sacramentos , por exemplo - onde a desproporção não é menor entre o meio e o fim; alguns daqueles que formulam tal objeção talvez não tenham nem sequer pensado nisso. Quanto a nos, não confundimos um simples meio com uma causa, no sentido verdadeiro desta palavra, nem encaramos a realização metafísica como um efeito do que quer que seja, porque ela não é produção de alguma coisa que não exista ainda, mas a tomada de consciência daquilo que é, de uma maneira permanente e imutável, fora de toda sucessão, - temporal ou qualquer outra - pois todos os estados do ser, encarados em seu principio, estão em perfeita simultaneidade no eterno presente. 

               Não vemos, portanto, nenhuma dificuldade em reconhecer que não existe medida comum entre a realização metafísica e os meios que a ela conduzem — ou, se quiserem,os meios que a preparam. Eis, de resto, por que nenhum desses meios é estritamente necessário, de uma necessidade absoluta, ou, ao menos, não existe mais do que uma única preparação verdadeiramente indispensável, e esta e o conhecimento teórico. Este, por outro lado, não poderia ir muito longe, sem um meio que devemos assim considerar como aquele que desempenhará o papel mais  importante e mais constante: esse meio é a concentração; e aí reside alguma coisa de absolutamente estranho, de contrário mesmo, aos hábitos mentais do Ocidente moderno, onde tudo não tende senão à dispersão e à mudança incessante. Todos os outros meios não são  mais  do que secundários em relação a esse: eles servem sobretudo para favorecer a concentração, e também para harmonizar entre eles os diversos elementos da individualidade humana, a fim de preparar a comunicação efetiva entre essa individualidade e os estados superiores   do  ser. 
         
                 Estes meios poderão aliás, no ponto de partida, ser quase indefinidamente variados, pois, para cada indivíduo, deverão ser apropriados à sua natureza especial, conformado às suas aptidões e às suas disposições particulares. Em seguida, as diferenças irão diminuindo pois se trata de Vias múltiplas que tendem todas para o mesmo objetivo; e, a partir de certo estágio, toda a multiplicidade terá desaparecido; mas então os meios contingentes e individuais já terão acabado de desempenhar seu papel. Esse papel, para mostrar que ele não é de maneira alguma necessário, certos hindus comparam-no ao de um cavalo, com a ajuda do qual o homem chegará mais rápida e facilmente ao termo da viagem, mas sem o qual ele também poderia chegar. Poderíamos negligenciar os ritos, os procedimentos diversos indicados em vista da realização metafísica e, não obstante, apenas pela fixação constante do espírito e de todas as potências do ser no objetivo desta realização, atingir finalmente este propósito supremo; mas, se existem meios que tornam o esforço menos penoso, porque negligenciá-los voluntariamente? Será uma confusão entre o contingente e o absoluto o fato de levarmos em conta as condições do estado humano, já que é deste estado,  ele mesmo contingente, que somos obrigados efetivamente a partir para a conquista desses estados superiores , e depois para a conquista do estado supremo e incondicionado? 

                      Indiquemos agora, segundo os ensinamentos que são comuns a todas as doutrinas tradicionais do Oriente, as principais etapas da realização metafísica. A primeira, que não é mais do que preliminar, de certo modo, opera-se nos domínios humanos, e não se estende ainda para além dos limites da individualidade. Ela consiste numa extensão indefinida dessa individualidade, da qual a modalidade corporal, a única que está desenvolvida no homem comum, não representa mais do que uma porção muito mínima; mas é dessa modalidade corporal que se deve partir, de fato, e por isto se usam, para começar, meios emprestados à ordem sensível, mas que deverão, de resto, ter uma repercussão nas outras modalidades do ser humano. A fase da qual falamos é em suma a realização ou o desenvolvimento de todas as possibilidades que estão virtualmente contidas na individualidade humana, que constituem como que prolongamentos múltiplos dela, estendendo-se em diversos sentidos para alem do domínio corporal e sensível; e é através desses prolongamentos .que se poderá em seguida estabelecer a comunicação com outros estados. 

                    Essa realização da individualidade integral é designada por todas as tradições como a restauração daquilo que elas chamam "o estado primordial", o estado que é encarado como o do homem verdadeiro, e que escapa, já, a certas limitações características do estado comum, notadamente àquela que é devida à condição temporal. O ser que atingiu este "estado primordial" ainda não é mais do que um indivíduo humano, ele não está na posse efetiva de nenhum estado supra-individual ; e, no entanto, está desde já liberto do tempo, a sucessão aparente das coisas transformou-se para ele em simultaneidade; ele possui uma faculdade que é desconhecida ao homem comum e que pode se chamar o "sentido da eternidade". Isto é de extrema importância, pois aquele que não pode sair do ponto de vista da sucessão temporal e encarar todas as coisas de uma maneira simultânea é incapaz da menor concepção de ordem metafísica. A primeira coisa a fazer, para quem queira chegar verdadeiramente ao conhecimento metafísico, é colocar-se fora do tempo, diríamos, de bom grado, no "não-tempo", se uma tal expressão não devesse parecer demasiado singular e inusitada. Essa consciência do intemporal  pode, aliás, ser atingida de uma certa maneira, sem dúvida muito incompleta, mas já real, entretanto, bem antes de que seja obtido em sua plenitude esse "estado primor¬dial" de que acabamos de falar. 

                   Perguntarão , talvez: por que essa denominação de "estado primordial"? É que todas as tradições, inclusive as do Ocidente (pois a Bíblia mesma não diz outra coisa), estão de acordo ao ensinar que esse é o estado normal nas origens da humanidade, enquanto que o estado presente não é mais do que o resultado de uma decadência, o efeito de uma espécie de materialização progressiva que se produziu no curso das eras, através da duração de um certo ciclo. Não acreditamos na "evolução", no sentido que os modernos dão a esta palavra; as hipóteses auto-denominadas científicas que eles imaginaram não correspondem de forma alguma à realidade. Não é possível, aliás, fazer aqui mais do que uma simples alusão à teoria dos ciclos cósmicos, que está particularmente desenvolvida nas doutrinas hindus; seria sair do nosso assunto, pois a cosmologia não é a metafísica, se bem que dela dependa bastante estreitamente; não é mais do que uma aplicação da metafísica à ordem física, e as verdadeiras leis naturais não são mais do que conseqüências, num domínio relativo e contingente, dos princípios universais e necessários. 

                 Voltemos  à  realização metafísica: sua segunda fase relaciona-se aos estados supra-individuais, mas ainda condicionados, se bem que suas condições sejam inteiramente diversas daquelas do estado humano. Aqui, o mundo do homem, onde estávamos ainda no estágio precedente, é inteira e definitivamente ultrapassado. É preciso dizer mais: o que é ultrapassado é o mundo das formas  em sua acepção mais geral, incluindo todos os estados individuais quaisquer que sejam, pois a forma é a condição comum a todos esses estados, é aquilo pelo qual se define a individualidade como tal. O ser, que já não pode mais ser dito humano, saiu doravante  da  "corrente das formas", segundo a expressão extremo-oriental. Haveria, aliás, outras distinções a fazer, pois esta fase pode-se subdividir: ela comporta, na realidade, muitas etapas, desde a obtenção de estados que, se bem que informais, pertencem ainda à existência manifestada,  até o grau de universalidade que é aquele do ser puro. 

                   No entanto, por elevados que sejam esses estados em relação ao estado humano, por afastados que estejam deste, ainda não são mais do que relativos, e isto é verdadeiro mesmo quanto ao mais alto dentre eles, que é aquele que corresponde ao Princípio de toda manifestação. Sua posse não é, portanto, mais do que um resultado transitório, que não deve ser confundido com o propósito último da realização metafísica; é para além do ser que reside este propósito, em relação ao qual  todo o resto não é mais do que encaminhamento e preparação. Esse propósito supremo é o estado absolutamente incondicionado, liberto de toda limitação; por esta razão mesma, ele é inteiramente inexprimível, e tudo aquilo que se pode dizer dele não se traduz senão em termos de forma negativa: negação dos limites que determinam e definem toda existência em sua relatividade. A obtenção deste estado é o que a doutrina hindu chama a "Libertação", quando o enfoca em relação aos estados condicionados, e também de "União", quando o enfoca em relação ao Princípio supremo. 

                 Nesse estado incondicionado, aliás, reencontram-se em princípio todos os outros estados do ser - mas transformados, separados das condições especiais que os determinavam enquanto estados particulares. O que subsiste é tudo aquilo que tem uma realidade positiva, pois é aí que tudo tem seu princípio; o ser "liberto" está verda¬deiramente em posse da plenitude das suas possibilidades. Aquilo que desapareceu foram somente as condições limitativas, cuja realidade é inteiramente negativa,pois que não representam mais do que uma "privação", no sentido em que Aristóteles entendia esta palavra. Igualmente, bem longe de ser uma espécie de aniquilação, como acreditam alguns ocidentais, esse estado final é a absoluta plenitude, a realidade suprema, em face da qual todo o resto não é mais que ilusão. 

                  Acrescentamos ainda que todo resultado, mesmo parcial, obtido pelo ser no curso da realização metafísica, é obtido de uma maneira definitiva. Esse resultado constitui, para esse ser, uma aquisição permanente, que nada poderá jamais fazê-lo perder; o trabalho realizado nessa ordem, mesmo que venha a ser interrompido antes do termo final, está feito de uma vez por todas, pela razão mesma de estar fora do tempo. Isto e verdadeiro mesmo quanto ao conhecimento teórico, pois todo conhecimento traz seu fruto em si mesmo, sendo, nisto, bem diferente da ação, que não é mais do que uma modificação momentânea do ser, e que é sempre separada dos seus efeitos. Estes, de resto, são do mesmo domínio e da mesma ordem de existência daquilo que os produziu; a ação não pode ter por efeito libertar da ação, e suas conseqüências não se estendem além dos limites da individualidade, enfocada aliás na integralidade da extensão de que é suscetível. A ação, qualquer que seja, não sendo oposta à ignorância, que é a raiz de toda limitação, não poderia fazê-la desaparecer: só o conhecimento dissipa a ignorância, como a luz do sol dissipa as trevas, e é então que o "Si", o eterno e imutável princípio de todos os estados manifestos e não-manifestos, aparece em sua suprema realidade. 

                     Após esse esboço bastante imperfeito, e que não dá seguramente mais do que uma fraca idéia daquilo que pode ser a realização metafísica, deve-se fazer uma observação que é inteiramente essencial para evitar graves erros de interpretação: é que tudo aquilo de que se trata aqui não tem nenhuma relação com fenômenos quaisquer, nem mais nem menos extraordinários. Tudo aquilo que é fenômeno é de ordem física; a metafísica está para além dos fenômenos; e tomamos esta palavra em sua mais ampla  generalidade. Resulta daí, entre outras conseqüências, que os estados dos quais acabamos de falar não têm absolutamente nada de "psicológico"; é preciso dizê-lo claramente, porque às vezes se produziram, com respeito a isso, singulares confusões. A psicologia, por definição mesma, não poderia abranger senão os estados humanos, e ainda, tal como a entendem hoje, ela não atinge mais do que uma zona muito restrita nas possibilidades do indivíduo, que se estendem bem mais longe do que os especialistas dessa ciência podem supor. O indivíduo humano, com efeito, é ao mesmo tempo muito mais e muito menos do que geralmente se pensa no Ocidente; ele é muito mais em razão de suas possibilidades de extensão indefinida para além da modalidade corporal,  à qual  se reporta em suma  tudo aquilo que geralmente se estuda a respeito; mas ele é também muito menos, já que, bem longe de constituir um ser completo e suficiente em si mesmo, não é mais do que uma manifestação exterior, uma aparência fugidia revestida pelo ser verdadeiro,  e pelo qual a  essência deste não é de forma alguma afetada em sua imutabilidade. 

                     É preciso insistir nesse ponto, de que o domínio metafísico está inteiramente fora do mundo  fenomênico, porque os modernos, habitualmente, não conhecem nem procuram outra coisa senão os fenômenos; é por estes que eles se interessam quase que exclusivamente, como de resto o testemunha o desenvolvimento que deram às ciências expe¬rimentais; e sua inaptidão metafísica procede da  mesma tendência. Sem dúvida pode ocorrer que certos fenômenos especiais se produzam no curso do trabalho da realização metafísica, mas de uma maneira inteiramente acidental; é um resultado antes prejudicial, pois as coisas desse gênero não podem ser senão um obstáculo para aquele que venha a ser tentado a atribuir-lhes qualquer importância . Aquele que se deixe parar e desviar da sua via pelos fenômenos, aquele, sobretudo, que se deixe ir em busca dos "poderes" excepcionais, tem bem pouca chance de levar a realização mais longe do que o grau ao qual   já   tenha  chegado no instante em que sobrevém esse desvio. 

                     Essa observação leva naturalmente a retificar algumas interpretações errôneas que correm a respeito do termo "Yoga"; não chegaram a pretender, às vezes, com efeito, que aquilo que os hindus designam por esta palavra fosse o desenvolvimento de certos poderes latentes do ser humano? Aquilo que acabamos de dizer basta para mostrar que uma tal definição deve ser rejeitada. Na realidade, essa palavra "Yoga" é aquela que traduzimos, tão literalmente quanto possível, por "União"; e o que ela designa propriamente é, portanto, o objetivo supremo da realização metafísica; e o "Yogue", se queremos entender a palavra no sentido mais estrito, é somente aquele que atingiu esse objetivo. Todavia, é verdade que, por extensão, esses mesmos termos são, em certos casos, aplicados também a estágios preparatórios à "União" ou mesmo a simples meios preliminares, e ao ser que atingiu os estados correspondentes a esses estágios, ou que emprega esses meios para atingi-los. Mas como poderíamos sustentar que uma palavra cujo sentido primeiro é "União" designe propriamente e primitivamente exercícios respiratórios ou alguma outra coisa deste gênero? Tais e outros exercícios, baseados geralmente naquilo que podemos chamar a ciência do ritmo, figuram efetivamente entre os meios mais freqüentes usados em vista da realização metafísica; mas que não se tome como fim aquilo que não é mais do que um meio contingente e acidental, e que não se tome igualmente pela significação original aquilo que não é mais do que uma acepção secundária e mais ou menos desviada. 

                 Ao falar daquilo que é primitivamente o "Yoga" e ao dizer que esta palavra sempre designou essencialmente a  mesma coisa, pode-se pensar em colocar uma questão da qual nada dissemos até aqui: qual a origem dessas doutrinas  tradicionais, das quais emprestamos todos os dados que  expomos? A resposta é muito simples, embora arrisque suscitar os protestos daqueles que desejam tudo encarar sob o ponto de vista histórico: é que não há origem; queremos dizer, com isto, que não há origem humana, suscetível  de ser determinada no tempo. Em outros termos, a origem  da tradição, (se é que esta palavra ‘origem’ tem ainda uma razão de ser em semelhante caso), é "não-humana", tal como a metafísica mesma. As doutrinas desta ordem não "apareceram", num momento qualquer da história da humanidade: a alusão que fizemos ao "estado primordial" e também,   de outro lado, aquilo que dissemos do caráter intemporal de tudo o que é metafísico, deveriam permitir compreender sem demasiada dificuldade, com a condição de que nos resignemos a admitir, contrariamente a certos preconceitos, que existem coisas às quais o ponto de vista histórico não é  de maneira alguma aplicável. A verdade metafísica é eterna; e por isto mesmo, sempre houve seres que puderam conhecê-la real e totalmente. O que pode mudar são apenas formas exteriores, meios contingentes; e esta mudança mesma nada têm daquilo a que os modernos chamam  "evolução"; ela não é mais do que uma simples adaptação a tais ou quais circunstâncias particulares, às condições específicas de uma raça ou de uma época determinada. Daí resulta a multiplicidade das formas; mas o fundo da doutrina não é de maneira alguma modificado ou afetado  por ela, tanto quanto a unidade e a identidade essen¬ciais do ser não são alteradas pela multiplicidade de seus estados de manifestação. 

                       O conhecimento metafísico, e a realização que ele implica para ser verdadeiramente tudo aquilo que deve ser, são portanto possíveis por toda a parte e sempre, ao menos em princípio e se esta possibilidade for enca¬rada sob um prisma, de certo modo, absoluto; mas, de fato, - praticamente, se podemos dizê-lo, e num sentido  relativo - são eles igualmente possíveis em qualquer meio que seja, sem levar na mínima conta as contingên¬cias? Quanto a isto, seríamos muito menos afirmativos, ao menos no que diz respeito à realização; e isto se explica pelo fato de que esta, em seu começo, deve  tomar um ponto de apoio na ordem das contingências. Pode haver condições particularmente desfavoráveis, como aquelas que oferece o mundo ocidental moderno; tão desaforáveis que, nele, um trabalho desses é quase impossível, e poderia mesmo ser perigoso empreendê-lo, na  ausência de todo apoio fornecido pelo meio, e num ambiente que não pode senão contrariar e mesmo aniquilar os esforços daquele que a isso se dedique. Pelo contrário, as civilizações que chamamos tradicionais são organizadas de tal modo que nelas se pode encontrar ajuda  eficaz , que sem dúvida não é rigorosamente indispensável, como tudo o que é exterior, mas sem a qual é entretanto bem difícil obter resultados efetivos. Existe nisso alguma coisa que ultrapassa as forças de um indivíduo humano isolado, mesmo que esse indivíduo possua, de resto, as qualificações requeridas. Igualmente não desejaríamos encorajar ninguém, nas condições presentes, a engajar-se inconsideradamente num tal empreendimento; e isto nos conduz diretamente à conclusão. 

                 Para nós, a grande diferença entre o Oriente e o Ocidente (e trata-se aqui exclusivamente do Ocidente moderno) , a única diferença, mesmo, que é verdadeiramente essencial, pois todas as outras derivam dela, é esta: de uma parte, conservação da tradição, com tudo o que ela implica; de outra, esquecimento e perda dessa mesma tradição; de um lado, manutenção do conhecimento metafísico; de outro, ignorância completa de tudo que diz respeito a esse domínio. Entre civilizações que abrem à sua elite as possibilidades que tentamos fazer entrever, que lhes dão os meios mais apropriados para realizar efetivamente essas possibilidades, e que permitem, pelo menos a alguns, realizá-las, assim, em sua plenitude, entre estas civilizações tradicionais e uma civilização que se desenvolveu num sentido puramente mate¬rial, como poderíamos encontrar uma medida comum? E quem .portanto,a menos que esteja cego por não sei qual partidarismo, ousará pretender que a superioridade material compense a inferioridade intelectual? Intelectual, afirmamos, mas entendendo por este termo a verdadeira intelectualidade, aquela que não se limita ã ordem humana nem â ordem natural, aquela que torna possível o conhecimento metafísico puro em sua absoluta transcendência. Parece-me que basta refletir um instante nessas questões para não ter nenhuma dúvida nem hesitação alguma quanto à resposta que lhes convém dar. 

                 A superioridade material do Ocidente moderno é incontestável ; ninguém a contesta, de fato, mas ninguém a inveja. É preciso ir mais longe: com esse desenvolvimento material excessivo, o Ocidente arrisca-se a perecer por causa dele, cedo ou tarde, se não se recuperar a tempo, e se não chegar a considerar seriamente o "retorno às origens”, segundo uma expressão que é de uso em certas escolas de esoterismo islâmico. De diversos lados, fala-se muito, hoje em dia, de "defesa do Ocidente"; mas, infelizmente, não se parece compreender que é sobretudo contra si mesmo que o Ocidente tem necessidade de ser defendido; que é de suas próprias tendências atuais que vêm os principais e os mais temíveis de todos os perigos que o ameaçam realmente. Seria bom meditar sobre isso com certa profundidade, e não seria excessivo convidar a isso todos aqueles que ainda são capazes de refletir. É com isso, também, que terminaremos nossa exposição, feliz caso tenhamos podido fazer, se não compreender plenamente, ao menos pressentir alguma coisa daquela intelectualidade oriental cujo equivalente não se encontra mais no Ocidente, e dar uma visão, por imperfeita que seja, do que é a metafísica verdadeira, o conhecimento por excelência, que é, como o dizem os textos sagrados da Índia, o único inteiramente verdadeiro, absoluto, infinito e supremo.



(Fonte: Instituto René Guénon: Português do Brasil)

sábado, 23 de outubro de 2010

Coração Irradiante e o Coração Ardente - René Guénon



O Coração Irradiante 
e  o 
Coração Ardente


Ao nos referirmos a propósito da "luz e da chuva", às representações do Sol com raios alternadamente retilíneos e ondulados, mencionamos que as duas espécies de raios se encontram também, de modo muito semelhante, em certas figurações simbólicas do coração. Um dos exemplos mais interessantes é o do coração figurado sobre um pequeno baixo-relevo de mármore negro, que data aparentemente do século XVI e provém do Convento Cartuxo de Saint-Denis d'Orques, tendo sido estudado por L. Charbonneau-Lassay.(l) Esse coração irradiante está colocado no centro de dois círculos sobre os quais se encontram respectivamente os planetas e os signos do Zodíaco, o que o caracteriza de forma evidente com o "Centro do Mundo", sob a dupla relação do simbolismo espacial e do simbolismo temporal.(2) Essa figuração é evidentemente "solar", mas no entanto, o fato de que o Sol, entendido no sentido "físico", encontra-se colocado no círculo planetário, tal como deve estar normalmente no simbolismo astrológico, mostra muito bem que se trata nesse caso do "Sol espiritual". 
 
Vale a pena lembrar que a assimilação do Sol ao coração, na medida em que ambos têm igual significação "central", é comum a todas as doutrinas tradicionais, no Ocidente e no Oriente. Proclo, por exemplo, assim fala ao se dirigir ao Sol: "Ocupando acima do éter o trono do meio, e tendo por imagem um círculo deslumbrante que é o Coração do Mundo, tu preenches a tudo com uma providência pronta a despertar a inteligência."3 Citamos de preferência esse texto, ao invés de muitos outros, em virtude da menção formal que se faz à inteligência. E, tal como já explicamos em muitas oportunidades, o coração é considerado também, antes de mais nada, em todas as tradições, como a sede da inteligência.4 Aliás, segundo Macróbio, "o nome Inteligência do Mundo que se dá ao Sol corresponde ao de Coração do Céu;(5) fonte da luz etérea, o Sol é para esse fluido o que o coração é para o ser animado.(6) Plutarco, ainda, escreveu que o Sol, "tendo a força de um coração, espalha e emite de si o calor e a luz, como se fosse o sangue e o sopro.7 Encontramos nessa última passagem, tanto para o coração como para o Sol, a indicação do calor e da luz, que correspondem às duas espécies de raios que considerávamos. E se o "sopro" está aí relacionado à luz, é porque na verdade se constitui no símbolo do espírito, que é em essência a mesma coisa que a inteligência. Quanto ao sangue, é evidentemente o veículo do "calor vivificante", o que se refere mais em particular ao papel "vital" do princípio que é o centro do ser.(8) 
 
Em certos casos, a figuração do coração dispõe de apenas um desses dois aspectos: a luz é naturalmente representada por uma irradiação de tipo comum, isto é, formada apenas de raios retilíneos, enquanto que o calor é representado, de hábito, por chamas que saem do coração. Podemos além disso observar que a irradiação, mesmo quando os dois aspectos estão reunidos, parece sugerir, de modo geral, uma reconhecida preponderância ao aspecto luminoso. Essa interpretação é confirmada pelo fato de que as representações do coração irradiante, com ou sem distinção das duas espécies de raios, são as mais antigas, datando na maioria dos casos de épocas em que a inteligência era ainda tradicionalmente referida ao coração, enquanto que as representações do coração ardente se difundiram sobretudo com as idéias modernas que reduzem o coração a corresponder apenas ao sentimento.9 E sabemos que, de fato, quase se chegou ao ponto de se dar apenas este último significado ao coração, e de se esquecer inteiramente sua relação com a inteligência. A origem desse desvio pode sem dúvida ser atribuída em grande parte ao racionalismo, na medida em que este pretende identificar pura e simplesmente a inteligência à razão; porém o coração nato está de modo algum relacionado à razão, mas sim ao intelecto transcendente, que no entanto, precisamente, é ignorado e mesmo negado pelo racionalismo. Na verdade, porém, a partir do momento em que o coração passa a ser considerado como o centro do ser, todas as modalidades desse ser podem num certo sentido ser referidas, ao menos indiretamente, ao próprio coração, inclusive o sentimento ou o que os psicólogos denominam "afetividade"; isso torna possível ainda observar as relações hierárquicas que decorrem do fato de apenas o intelecto ser verdadeiramente "central" e das demais modalidades só terem um caráter mais ou menos "periférico". No entanto, na medida em que a intuição intelectual que reside no coração passa a ser desconhecida (10) e tem a sua função "iluminadora" (11) usurpada pelo cérebro, nada mais resta ao coração que a possibilidade de ser considerado como a sede da afetividade. (12) Além disso, o mundo moderno deveria ver nascer ainda, como uma espécie de contrapartida do racionalismo, o que se poderia denominar de sentimentalismo, ou seja, a tendência de ver no sentimento o que há de mais profundo e mais elevado no ser, e de afirmar sua supremacia sobre a inteligência. E é evidente que tal coisa, como tudo que na realidade constitui a exaltação do "infra-racional", só pôde produzir-se porque a inteligência tinha sido previamente reduzida à razão pura e simples. 
 
Agora, se deixarmos de lado o desvio moderno que acabamos de indicar e quisermos, dentro de seus legítimos limites, estabelecer uma certa relação do coração com a afetividade, deveremos considerar tal relação como resultado direto do papel do coração como "centro vital" e sede do "calor vivificante", ficando assim a vida e a afetividade coisas muito próximas entre si, ou mesmo inteiramente conexas, enquanto a relação com a inteligência é por certo de uma ordem muito diferente. Quanto ao mais, essa estreita relação entre a vida e a afetividade está expressa de maneira clara pelo próprio simbolismo, visto serem ambas, representadas sob aspecto de calor.(13) E é em virtude dessa mesma assimilação que, embora de uma forma muito pouco consciente, fala-se habitualmente na linguagem comum do calor do sentimento ou da afeição. (14) É preciso ainda notar a esse respeito que, quando o fogo se polariza em seus dois aspectos complementares, a luz e o calor, estes, em sua manifestação, encontram-se por assim dizer em razão inversa entre si. Sabemos, mesmo do ponto de vista da física, que uma chama é de fato tanto mais quente quanto menos ilumina. Do mesmo modo, o sentimento só é na verdade um calor sem luz.15 Também no homem pode ser encontrada uma luz sem calor, como a razão, que é uma luz refletida, fria como a luz lunar que a simboliza. Na ordem dos princípios, ao contrário, os dois aspectos, como todos os complementares, estão juntos e unidos indissoluvelmente, pois são constitutivos de uma mesma natureza essencial. É o que acontece também com o que diz respeito à inteligência pura, que pertence exatamente a essa ordem dos princípios, o que vem confirmar mais uma vez, como indicamos antes, que a irradiação simbólica sob sua dupla forma pode ser-lhe integralmente vinculada. O fogo que reside no centro do ser é luz e calor ao mesmo tempo. Mas, se quisermos traduzir esses dois termos respectivamente por inteligência e amor, ainda que sejam no fundo dois aspectos inseparáveis de uma única coisa, será necessário, para que essa tradução se torne aceitável e legítima, acrescentar que o amor em questão difere do sentimento ao qual se dá o mesmo nome, na mesma proporção em que a inteligência pura difere da razão. 
 
 Pode-se compreender facilmente, com efeito, que certos termos tomados da afetividade sejam, como tantos outros, passíveis de serem transpostos analogicamente para uma ordem superior, pois todas as coisas têm de fato, além do seu sentido imediato e literal, um valor de símbolos em relação a realidades mais profundas. E é evidente que isso também ocorre, em particular, todas as vezes em que se trata do amor nas doutrinas tradicionais. Entre os próprios místicos, apesar de certas confusões inevitáveis, a linguagem afetiva aparece sobretudo como um modo de expressão simbólica, pois, seja qual for entre eles a parte incontestável do sentimento no sentido usual dessa palavra, é no entanto inadmissível, apesar do que pretendem os psicólogos modernos, que não exista aí mais que emoções e afeições puramente humanas atribuídas, enquanto tais, a um objeto supra-humano. Entretanto, a transposição torna-se ainda muito mais evidente quando se constata que as aplicações tradicionais da idéia de amor não se limitam ao domínio exoterico e sobretudo religioso, mas estendem-se também ao domínio esotérico e iniciático. É o que ocorre em particular com os inúmeros ramos ou escolas do esoterismo islâmico e também com certas doutrinas da Idade Média ocidental, em especial nas tradições próprias das Ordens da cavalaria,16 bem como na doutrina iniciática, aliás conexa, que encontra sua expressão em Dante e nos "Fiéis de Amor". Podemos acrescentar que a distinção entre a inteligência e o amor, assim entendida, tem sua correspondência na tradição hindu com a distinção entre Jnâna-mârga [caminho do conhecimento] e Bhakti-mârga [caminho da devoção]. A referência que acabamos de fazer às Ordens da cavalaria indica, além do mais, que o caminho do amor é em particular mais apropriado aos kchátrias, enquanto o caminho da inteligência ou do conhecimento é naturalmente aquele que convém sobretudo aos brâmanes. Mas, em suma, trata-se de uma diferença que apenas se aplica à forma de considerar o Princípio, de acordo com a própria diferença das naturezas individuais, mas que não poderia de forma alguma afetar a indivisível unidade do próprio Princípio. 

                                                                              
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NOTAS:


1. Le Marbre astronomique de Saint-Denis d'Orques, na Regnabit, fev. 1924, [republicado no livro Le Bestiaire du Christ, cap X]. Esta gravura está reproduzida acima, ao lado do título deste estudo.
2. Existem também, na mesma figura, outros detalhes de grande importância do ponto de vista simbólico: assim, em especial, o coração tem uma chaga, ou alguma coisa com a aparência exterior de uma chaga, com forma de ura iod hebraico, o que se refere ao mesmo tempo ao "Olho do coração" e ao "germe" do avatar que reside no "centro", quer seja este entendido no sentido macrocósmico ( o que é aqui claramente o caso) ou no sentido microcósmico (v. Aperçus sur l’Iniciation, cap. XLVIII). 
3. Hymne au Soleil, trad. de Mario Meunier. 
4) É claro (e voltaremos a isso mais adiante) que se trata aqui da inteligência pura, no sentido universal, e não da razão, que é o simples reflexo dela na ordem individual e está relacionada ao cérebro; no ser humano, o cérebro está para o coração em relação análoga a que, no mundo, a Lua está para o Sol. 
5) A expressão "Coração do Céu", aplicada ao Sol encontra-se também nas antigas tradições da América Central. 
6) O Sonho de Cipião, 1,20. 
7) Da face que se vê no círculo da Lua, 15,4. Esse texto e o precedente são citados em nota pelo tradutor a propósito da passagem de Proclo que acabamos de reproduzir. 
8) Aristóteles assimila a vida orgânica ao calor, no que está de acordo com todas as doutrinas orientais. O próprio Descartes coloca no coração um "fogo sem luz", mas que para ele é apenas o princípio de uma teoria fisiológica exclusivamente "mecanicista”, como toda sua física, o que, bem entendido, nada tem em comum com o ponto de vista tradicional dos antigos. 
9)  É notável a esse respeito que, em particular no simbolismo cristão, as mais antigas figurações conhecidas do Sagrado Coração pertencem todas ao tipo do coração irradiante, enquanto que naqueles que não remontam além do século XVII, encontra-se o coração ardente de uma forma constante e quase que exclusiva. Aí está um exemplo muito significativo da influência exercida pelas concepções modernas até no domínio religioso. 
10) Essa intuição intelectual é exatamente simbolizada pelo "olho do coração". 
11) Cf. o que dissemos em outra parte sobre o sentido racionalista dado aos "luminares" do século XVIII, em especial na Alemanha, e sobre a significação correspondente da denominação Iluminados da Baviera 
(Aperçus sur l'Initiation, cap. XII). 
12) É assim que Pascal, contemporâneo dos inícios do racionalismo propriamente dito, já entende “coração” no sentido exclusivo de “sentimento”. 
13. Trata-se aqui, naturalmente, da vida orgânica em sua acepção mais literal, e não do sentido superior no qual a vida, ao contrário, está em relação com a luz, tal como se vê em especial no início do Evangelho de São João (cf. Aperçus sur 1'Initiation, cap. XLVII). 
14. Entre os modernos, considera-se também com grande freqüência que o coração ardente representa o amor, não só o amor no sentido religioso, mas também no sentido puramente humano. Era essa a representação corrente, sobretudo no século XVIII. 
15. É por isso que os antigos representavam o amor como sendo cego. 
16. Sabe-se que a base principal dessas tradições era o Evangelho de São João: "Deus é Amor”, o que seguramente só pode ser compreendido pela transposição do que falamos; e o grito de guerra dos Templários era:  “Viva Deus Santo Amor”.

(fonte: Instituto René Guénon)